Publicado pela primeira vez no site do IJEP no dia 27/04/2020

   Este é o quarto e último artigo da sequência: “O universo de Lain”, “A concretude e a virtualidade” e “A wired”, sendo, assim, conclusão dos anteriores. Vale lembrar que estes artigos discutem o anime “Serial experiments Lain”, apresentando, portanto, vários elementos da trama, inclusive sobre seu final. Logo, para aqueles que se interessem em assistir o anime, é recomendável que o faça antes de ler estes textos.

   O tema “deus” aparece cedo no anime, sendo uma discussão muito importante para a trama em si. Primeiro, no início da trama, a amiga de Lain, que comete suicídio, envia um e-mail para ela dizendo que estava na wired e que deus estava lá e, implicitamente, indica que este mesmo deus é quem a havia chamado. Em grande parte da história, esse suposto deus é citado várias vezes. Um ponto muito importante da primeira parte do anime é um episódio no qual uma existência especula sobre o que é este deus e aponta que Deus pode não existir no mundo material, mas com certeza existe, ou algo semelhante a Ele, na wired. Esta entidade divina possui a habilidade de alterar o mundo material através de profecia, porém não explica  exatamente o que isso quer dizer. Podemos entender esta “profecia” de duas formas: a primeira é que deus só pode afetar o nosso mundo indiretamente, pois ele precisa criar profecias, e são estas profecias que realmente afetam nosso mundo. A partir da perspectiva da psicologia junguiana podemos associar este mecanismo com a relação indireta que os arquétipos estabelecem com a consciência, pois o arquétipo não pode afetá-la diretamente, mas cria imagens que o fazem. Numa segunda interpretação, a profecia se assemelha ao Verbo divino, uma palavra que se torna uma ação. Se considerarmos a palavra como do reino virtual e a ação como do reino concreto, esta interpretação representa a concretização de uma ideia.

   Quando a história avança, é revelado através de um narrador que este auto-proclamado deus na verdade é Eiji, um humano que estava trabalhando nos novos protocolos da wired e se aproveitou desta oportunidade para codificar a ressonância Schumann (um conjunto de picos no espectro na ELF criados pela própria Terra) em sua própria mente, adicionando estes dados ao código-fonte da wired; já que sua consciência faz parte deste código-fonte, ele pode se espalhar através dela para todos os lugares. Porém, no dia seguinte após terminar de construir este código, seu corpo físico no mundo material é encontrado atropelado na linha de trem, sem ficar claro se por homicídio ou suicídio, mas aparentemente trata-se do segundo caso. Quando esse personagem surge, há várias discussões interessantes com a personagem principal, mas para o objetivo desse artigo, vamos focar na argumentação do porquê ele se intitula como Deus.

   Já que as três principais características de Deus é a onipresença, onisciência e onipotência, Eiji alega ser Deus já que se torna onipresente porque ele agora faz parte da wired que, como a internet de nosso mundo, já está em todos os lugares e aparentemente em qualquer lugar que houvesse cabos de energia. Diz ser onisciente já que está em todos os lugares e mantêm seus sentidos, então consegue perceber o que acontece no mundo todo. Porém, ainda não é onipotente, mas à medida em que a rede está suplantando o mundo concreto, seus poderes aumentam e, desta forma, conclui que mesmo que não seja o Deus criador do cosmos, ele merece a categoria de Deus. Além desta primeira discussão, ele aponta que Deus é aquele que possui seguidores, próximo a crenças arcaicas em que os deuses precisavam se alimentar da fé e adoração dos mortais para manter seus poderes, ou até continuar existindo. Do ponto de vista psicológico, não importa se uma divindade metafísica realmente existe ou não; se houver pessoas que acreditem nessa entidade ela se torna real para essas pessoas. Desta forma, causa algum tipo de efeito na vida das mesmas, logo é impossível duvidar da sua existência, pelo menos como constructo.

   Um último argumento que ele usa para dizer que é Deus é a própria existência de Lain, a qual ele chama de programa criado para unir os dois mundos, ou seja, ela é, nas palavras dele, um executável à qual foi dada forma física pelas próprias ações dele. Neste quesito há dois paralelos interessantes para se levantar. O primeiro é o mito da criação humana no cristianismo, no qual nascemos supostamente do barro que foi soprado por Deus. Atualizando para a linguagem tecnológica moderna, não é de todo absurdo comparar com um programa de computador que assume forma humana. O segundo é se aproximarmos o conceito de wired e o mundo das ideias de Platão, ele se coloca como um Demiurgo, pelo menos no caso da Lain, ao dizer que foi ele que deu um corpo a ela.

   Ainda afirma que entre as “duas Lains”, a versão existente na wired é um ser divino pelos mesmos motivos que ele se tornou, logo representava tudo o que ele almejava se tornar. Porém a Lain do mundo concreto é uma farsa, um holograma feito a partir da Lain da wired, logo só um corpo físico. Ele diz que a protagonista é a lenda da wired, a heroína dos seus contos de fada. Porém, existe algo que os diferencia radicalmente a ponto de os tornar opostos: Eiji é um humano que, na ambição de se tornar Deus, se transforma em um conceito através da wired, conseguindo, assim, seus seguidores; já Lain nasce como um conceito para então poder se tornar um ser humano físico. Comparando momentos diferentes da fala do suposto deus e algumas de narradores, podemos supor que a “concretização” de Lain começa quando o mesmo adiciona na wired a ressonância Schumann. Desta forma, a protagonista seria a concretização desta ressonância. Logo, a concretização da própria consciência da terra que, até então, estava adormecida. Além disto, Eiji alega que a própria Lain criou os “knights”, organização descendente dos cavaleiros templários, que usavam o “inconsciente coletivo” como forma de comunicação, e é esta organização que hoje reverencia os dois como deuses. Neste sentido, será que o inconsciente coletivo, como é citado no anime, é também esta ressonância que, de alguma forma, conecta todos os seres humanos?

   Apesar da existência de um Deus metafísico não estar em discussão na teoria de Jung, há na psique humana uma imagem divina e esta é com certeza um interesse direto da psicologia. Esta imagem associa-se ao que a psicologia junguiana denomina de Self que, muitas vezes, também é descrito como nossa verdadeira essência, imagem da totalidade. Desta forma, contém todos os opostos e é, normalmente, representada como um círculo, como a mandala que, justamente por ser representação desta figura, possui efeito estruturante na psique. Ao pensarmos dessa forma, podemos dizer que nenhum desses dois personagens pode ser considerado como a imagem psicológica de Deus. Ambos aparentam estar no processo de se tornar esta imagem, mas não estão realmente e, além disso, estes personagens são opostos entre si. Eiji é um humano que tenta se tornar Deus e, desta forma, é uma entidade consciente que almeja o poder de divindade. Sendo assim, podemos associá-lo a um Ego inflado que, justamente por acreditar que possui mais poder do que realmente possui, comete o pecado do orgulho, o que gera a crença de que não exista nada além dele, ignorando todos os elementos sombrios da alma. Lain originalmente não é humana, é uma entidade da wired, então, seguindo nossa analogia, ela é um elemento do inconsciente. Porém, a ela é dada forma humana para que possa agir no mundo concreto. Deste modo é como a “alma” ou Anima que normalmente aparece na consciência através dos sonhos ou fantasias, mas que não deveria tomar posse da consciência, como ocorre no anime.

   Ambos representam forças da psique humana que buscam a totalidade tomando o espaço de seu oposto: o Ego, como centro da consciência, está buscando no inconsciente por sua totalidade, enquanto a alma, como elemento inconsciente, busca na consciência sua totalidade. No anime,eles se tornam patológicos, pois ao invés de buscar cooperação com o outro lado, tentam dominar e se tornar o representante da totalidade sozinhos. No final da história, Lain sai deste papel inflado e compreende os planos de Eiji, como também compreende a importância do equilíbrio entre “alma” e corpo. A partir desta compreensão se afasta do mundo concreto e força Eiji a se afastar da wired. Outros pequenos detalhes interessantes sobre o final do anime são apresentados em uma conversa entre os dois personagens: Lain questiona sobre como Eiji teve a ideia de colocar a ressonância Schumann dentro dos protocolos da wired, supondo, assim, que possa haver um Deus que o tenha convencido. Após esta cena, Lain abandona totalmente o mundo físico, parecendo voltar o mundo no tempo, criando um mundo onde nunca existiu como humana. Fora do mundo que acaba de criar, ela discute com uma versão dela mesma, apontando que wired estava conectada a “algo mais” que não é especificado; nesse novo mundo essa conexão não existe mais.

Referências:

JUNG, C. G. Aion. Estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

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