Publicado pela primeira vez no site do IJEP no dia 11/02/2021
Este artigo está inspirado no jogo de RPG chamado Changeling: o sonhar, pertencente à franquia “World of Darkness”, criado pela empresa WhiteWolf. Franquia esta composta por jogos que apresentam uma versão de nosso mundo mais sombria e um tanto decadente, no qual várias criaturas sobrenaturais existem nas margens da sociedade humana, sendo que o jogo mais famoso traz os vampiros como protagonistas. Já no jogo aqui considerado, estes são fadas que ficaram no mundo humano até os tempos modernos. Porém, para que isto ocorresse, precisaram “invadir” fetos humanos, sendo que ao nascerem como humanos, sua memória como fadas adormeceu. Estas memórias voltam quando a personalidade humana já está desenvolvida e, assim, o ser que ele se torna – Changeling – é uma junção do que ele era como fada e como ele se tornou como humano.
Além de ser uma ótima forma de disfarce, as fadas “puras” são seres etéreos que se alimentam de “glamour” que, no jogo, é entendido como a própria criatividade e esperança em forma de energia. Na visão desses seres o sonho é uma expressão dessa própria criatividade, deixando claro que se trata tanto do sonho como evento noturno quanto do sonho como aspiração pessoal. Em tempos arcaicos, a humanidade esbanjava criatividade com seus mitos e lendas complexos, mas em tempos modernos, em que o positivismo científico está em alta, a humanidade se tornou muito mais cética e cheia de descrença. Isso tudo tornou o mundo tóxico para as fadas, com uma lógica semelhante à Sininho, de Peter Pan, pois quanto menos os humanos acreditarem nas fadas e na magia, menos elas terão do que se alimentar, definhando e morrendo. Logo, o motivo final das fadas tomarem corpos humanos no mundo moderno é para se defender da descrença, pois mesmo que toda a criatividade da fada morra e o Changeling se torne apenas um humano comum, a alma de fada continuará lá e, no momento da sua morte, esta alma poderá renascer em um novo corpo. Este artigo não se configura, assim, numa análise do jogo, mas numa reflexão sobre a desqualificação da criatividade em favor da racionalidade, tomando a figura do Changeling como ilustração.
A criatividade como uma função vital, sua desvalorização nos tempos modernos e os consequentes aspectos patológicos são discutidos, de formas diferentes, por diversas obras fictícias e científicas. Esse fenômeno, também ilustrado pelo jogo, será aqui discutido com base na psicologia analítica de Carl Gustav Jung em diálogo com Jacob Levy Moreno e Johan Huizinga.
Moreno (2014), ao trabalhar o psicodrama, aponta que a espontaneidade é um aspecto vital para os humanos, pois possuímos “a fome de expressão”, que é mais uma fome por atos do que por palavras. A espontaneidade é o elemento que mais alimenta esta fome já que, ao agirmos, podemos expressar através da atuação (tanto a atuação do teatro quanto o acting out) nossos conteúdos internos, o que na visão desse autor representa uma possibilidade de melhora de algum quadro clínico, pois a maior parte dos conflitos inconscientes apenas precisam ser iluminados pela consciência. Porém, nossa sociedade atual exige que tudo seja feito de determinada forma, o que leva a uma perda de oportunidades de sermos espontâneos e criativos, pois precisamos obedecer a certas regras que contrariam a inovação. O autor diz que a maior causa deste aspecto é a mentalidade positivista e prática que tomou a sociedade, pois toda ação precisa de uma finalidade prática e um método organizado, arcabouço das regras que limitam a criatividade. Ainda assim, aponta que com a ficção, que era crescente em sua época, a humanidade está voltando a sonhar e acreditar, de forma que possa algum dia retomar a espontaneidade.
Huizinga (2019) aborda o lúdico como um elemento vital para a humanidade. Suas principais características são: todo jogo deve ser voluntário, mesmo que possua regras específicas, e se alguém é forçado a jogar algo, este algo perde seu aspecto lúdico, se tornando apenas uma imitação; o jogo acontece fora da esfera da vida comum, desta forma, ele não possui, a princípio, uma finalidade prática que não seja o próprio jogo, e quando se é dado alguma finalidade, corre-se o risco de perder o aspecto lúdico; como extensão da anterior, o jogo apenas pode acontecer em um espaço e tempo determinado para ele, não sendo uma tarefa, é uma atividade “de tempo livre” e no aspecto espaço vai até além, há uma demarcação física ou imaginária para que este ocorra; todo jogo exige regras, que devem estar em comum-acordo e são assumidas até seu final; por fim, em todo jogo sentimentos de tensão e felicidade são inerentes e caso o “espírito esportivo” seja perdido, também se perde o verdadeiro elemento lúdico. Assim, dentro do circulo do jogo há uma ordem perfeita, na qual a confusão e imperfeição da vida concreta é suspendida temporariamente.
Para Jung (2011), o símbolo é a melhor representação possível de um mistério, algo que está para além da consciência e não pode ser entendido por sua racionalidade, por isso deve ser sentido e vivido, mas não interpretado de forma racional. O símbolo tem o efeito de aproximar a consciência do inconsciente, na medida que é algum conteúdo inconsciente que usa de elementos da consciência para que essa o compreenda, o que o torna um elo de ligação, já que é parcialmente inconsciente e parcialmente consciente. Através do símbolo podemos viver para além da realidade comum, possibilitando a experiência numinosa, por exemplo, através da religião, arte ou situações similares. Desta forma, ele possui tempo e espaço próprios fora da realidade comum. Possui efeito curador sobre a psique por representar a situação psicológica humana. Só podemos dizer que um símbolo está vivo quando ele é a melhor representação possível do mistério, contudo, quando deixa de ser, seja pelo surgimento de uma representação melhor ou quando perde sua multiplicidade de sentidos devido à racionalização, ele está morto.
Podemos pensar que os autores acima citados estejam falando de um mesmo fenômeno: há algo na psique humana que representa o irracional e, justamente por isso, é muito difícil de ser nomeado e explicado, mas claramente possui características relacionadas à criatividade, ao pensamento fantasioso e até ao ócio. Este algo é fundamental para vida psíquica. Porém, a vida moderna, com sua “seriedade”, isto é, com a unilateralização da consciência, acaba bloqueando o elemento irracional, e isto conduz ao adoecimento. Em outras palavras, este é o constante conflito entre o inconsciente e a consciência.
Jung também afirma que a consciência foi algo adquirido pela humanidade com muito esforço e com alto custo. A condição consciente nasce a partir do inconsciente e se afasta aos poucos do seu solo original, porém ao fazê-lo também se afasta dos instintos naturais, sendo assim quase que um esforço antinatural. Assim, o positivismo científico pode ser visto como o ápice deste processo de unilateralização, pois afasta toda possibilidade do irracional para alcançar o lógico e o observável.
Este desenvolvimento, que originalmente era positivo e saudável, torna-se negativo e danoso quando perde sua medida. A consciência nos trouxe vários ganhos: enquanto adaptação ao mundo externo, conseguimos alcançar um grande desenvolvimento científico e tecnológico, porém em detrimento da criatividade, da espontaneidade, da ludicidade e do simbólico, aspectos que possibilitam a adaptação interna. É a partir desta linguagem que podemos ter contato com nossa própria alma e lá encontrarmos de novo o aspecto “fada” que todos nós possuímos de alguma forma. Tomando o jogo citado no início deste artigo como metáfora, podemos dizer que toda a humanidade é composta de Changelings, que são metade seres humanos banais, frutos de seu tempo e espaço, e metade fadas, entidades cósmicas feitas de pura criatividade que estão pra além do tempo e espaço comuns, ou seja, estão fora da “vida comum”.
Para um funcionamento adequado do aparelho psíquico é necessário que estes dois lados, o racional e o irracional, ou o consciente e o inconsciente, ou ainda, o banal e o “fada”, possuam certo equilíbrio, pois cada um tem uma função específica que precisa ser realizada, caso contrário pode originar alguma patologia. Este é o retrato da sociedade moderna na perspectiva do jogo e dos autores citados: a racionalidade é idealizada em tal grau que anula a outra metade da experiência humana. Dessa forma, há uma desconexão de si mesmo e da natureza humana, o que leva, entre outros, ao grande número de casos de depressão observados na atualidade, como resultado da perda de sentido.
Assim como no jogo, precisamos resgatar esse lado irracional da existência humana, o que pode ocorrer através da religião, da arte e do jogo. Como aponta Moreno (2014), a ficção está fazendo este papel na sociedade atual, mas encontramos nos outros autores a mesma esperança de que este lado seja resgatado. Mesmo que na sociedade atual este aspecto esteja reprimido, ele continua existindo em nós assim como a alma “fada” continua existindo no Changeling, mesmo que este perca totalmente o contato com ela. Logo, podemos dizer que, em alguma época, os valores conscientes são mobilizados à mudança em função do irracional, o que permite que a conexão volte a acontecer, sendo este um dos motivos do uso da arte e o do lúdico no espaço clínico.
Referências
HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 9 Ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.
JUNG, C.G. A vida Simbólica. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
MORENO, J.L.; MORENO, Z.T. Fundamentos do psicodrama. São Paulo: Summus, 2014.
COCHRAN, D. Changeling: The Dreaming. Stone Mountain: White Wolf, 2017.