Artigo escrito originalmente para a conclusão da disciplina “Fundamentos educacionais do cinema: hermenêutica e contemporaneidade” do mestrado em educação da USP.
“Control” é um jogo de tiro em terceira pessoa desenvolvido pela empresa finlandesa Remedy Entertainment, dirigido por Mikael Kasurinen e produzido por Juha Vainio, publicado em 2019 pela empresa 505 games. O jogo narra as aventuras da protagonista, Jesse Faden, em busca de seu irmão através da “Antiga Casa”, centro de operações da “Agência Federal de Controle”, cujo objetivo é estudar, conter e ultimamente controlar fenômenos paranormais. Quando criança, Jesse esteve no epicentro de um “Fenômeno de Mundo Alterado”, nomenclatura do jogo para eventos em que a realidade perceptível é alterada por forças paranormais, evento este que praticamente destruiu toda a cidade de Ordinary, porém estranhamente foi contido antes que a Agência chegasse ao local. Ao final do evento, o irmão de Jesse, chamado Dylan, foi levado pela Agência, que não forneceu explicações adequadas à garota, que cresceu sem a presença deste irmão. Desde então, ela tenta processar a experiência que viveu, mesmo que todos a sua volta, inclusive os profissionais de saúde, alegassem que se tratava de parte de sua imaginação, já que oficialmente a cidade foi destruída por uma explosão de gás.
Já no início do jogo a protagonista está em contato com uma entidade chamada “Polaris”, a estrela guia, porém só muito tardiamente fica claro o que realmente é esta entidade. É Polaris que informa a existência da Agência à protagonista e a guia até a Antiga Casa que, apesar de ser um arranha-céu no centro da cidade de Nova York, não pode ser vista por pessoas normais sendo, como dizem no senso comum, “escondida em plena vista”. O jogo tem início no momento em que Jesse efetivamente entra no prédio e caminha pelos corredores vazios até encontrar o chefe dos faxineiros Ahti, que logo a reconhece como a garota contratada para ser sua assistente. Mesmo que ela não compreenda o que está acontecendo, concorda com ele que lhe indica a direção para o escritório do diretor. Ao entrar no escritório, ela se depara com o diretor morto que, pela cena, aparenta ter sido um suicídio, já que sua arma está ao seu lado.
Num impulso, ela apanha a arma e logo percebe que não se trata de uma arma normal, pois, ao mesmo tempo, ela se vê em uma dimensão infinitamente branca, com vários objetos de formas simples, que funcionam como uma pista de teste para as habilidades motoras da personagem. Isto, em termos de jogo, caracteriza o tutorial dos comandos de movimento avançados e como lutar usando a arma. Nesta dimensão, ouve uma cacofonia de vozes, que se autodeclara o Conselho Diretor da Agência, dizendo que a arma que ela segura se chama “arma de serviço”, um objeto de grande poder. Nas palavras da Agência, trata-se de um “Objeto de Poder”, objetos que possuem efeitos paranormais e, além disso, pode conceder total ou parcialmente seus poderes para seu usuário, sendo que, no caso da arma, é o próprio direito de se tornar o diretor da Agência, assim como a excalibur é para a Inglaterra, além de se moldar em diferentes armas de fogo que auxiliam a protagonista em sua aventura.
Assim que sai do escritório, a então nova diretora se depara com seguranças com uma aura vermelha, a qual reconhece apenas como “Ruído”, sabendo que é uma força que corrompe qualquer coisa que toca, sejam objetos ou humanos. Após enfrentar vários agentes corrompidos, encontra-se com Emily Pope, a especialista de pesquisa da Agência que logo a reconhece como a nova diretora, tanto por portar a Arma de Serviço quanto por seu nome. Emily a guia através da Antiga Casa, num acordo de ajudá-la a encontrar seu irmão em troca de seu auxílio para se livrar da ameaça do Ruído, que já havia se espalhado por todo o prédio, além de impedi-lo de sair do prédio, o que potencialmente significaria a extinção da humanidade.
Após muitos conflitos e vários encontros com entidades e objetos paranormais, Jesse finalmente reencontra seu irmão, descobrindo que este foi levado pela Agência para ser treinado como o novo diretor, por já possuir poderes paranormais. Mas, quando o encontra, já está corrompido pelo Ruído. Com o objetivo de salvar o irmão, investiga novos setores da Antiga Casa, como aquele onde ele estava preso e sendo treinado, descobrindo que ao mesmo tempo que ele, ela também já estava sendo treinada, mesmo que em segredo dela própria, para ocupar o cargo de diretora. Nesta parte do jogo descobrimos a verdadeira natureza do evento ocorrido em Ordinary, um Objeto de Poder chamado simplesmente de “Projetor de Slides”, que foi encontrado por um grupo de crianças, do qual Jesse e Dylan participavam, que tem o poder de abrir portais para outras dimensões através da sua projeção. Dos portais abertos, dois tiveram uma significância especial para os acontecimentos: o primeiro que leva à dimensão a qual o Ruído habitava, e o outro, a uma entidade apenas conhecida como Hedron. Esta foi levada até à Antiga Casa, sendo que nessa etapa do jogo é revelado que a Polaris nada mais é do que parte da consciência de Hedron que “entrou” na mente de Jesse, concedendo-lhe apoio e habilidades sobrenaturais, inclusive a de resistir ao Ruído. Muitos estudos foram feitos tanto com o projetor quanto com Hedron e, dessa forma, o chefe de pesquisas, Casper Darling, não só conseguiu prever a invasão pelo Ruído, quanto construiu aparelhos que amplificavam a ressonância produzida por Hedron, que protegem o usuário da corrupção do Ruído.
A parte final do jogo se inicia ao Jesse tentar se encontrar fisicamente com Hedron. Porém, quando finalmente a encontra, descobre que ela está quase sendo destruída pelos enviados do Ruído, sendo uma etapa densa em combate, que termina quando o jogador consegue eliminar todas as forças de invasão, contudo sem evitar a morte de Hedron. Desorientada pela perda da primeira guia, Jesse quase sucumbe ao Ruído, sendo salva pelo que restou da entidade em forma de Polaris dentro de si, além da voz de Ahti que a relembra de sua posição como diretora. Logo após sair de um transe causado pelo Ruído, encontra-se com o faxineiro, que deixa subentendido ser um deus, concedendo-lhe não só orientação, mas também suas bênçãos. A cena final do jogo é quando Jesse, com as bênçãos de Ahti, Polaris e imbuída de poder pelo Conselho Diretor, vai até o Projetor de Slides, centro da invasão pelo Ruído, destruindo-o.
Este resumo detalhado tem como objetivo uma apresentação geral para que, nas próximas sessões, possamos realizar um estudo hermenêutico sobre o jogo. Com este objetivo em mente, o artigo será dividido em outras três sessões: estilo, diegese e narração principal.
Estilo
Neste artigo será tomada a definição de “estilo” proposta por Bordwell (1996) na sua visão sobre a narrativa do cinema de ficção. Segundo o autor, podemos dividir a narração do filme em três elementos principais: o argumento, o estilo e a história, sendo que o argumento e o estilo são construídos pelo próprio filme, e a história se faz presente na relação entre o filme e o espectador. O argumento, resumidamente, são as informações concretas que a obra nos proporciona, os acontecimentos, diálogos, as paredes do setting, os objetos de cena, entre outros, todas as informações que o diretor quer nos passar para que possamos construir a história. O estilo é a forma como esses eventos são narrados, as técnicas de gravação, closes, câmera subjetiva, etc. Esse estilo está, normalmente, baseado em padrões mais ou menos universais, ou “esquemas”. Por exemplo, no jogo que está sendo estudado, estamos falando dos esquemas do “herói”, da “agência do governo”, “invasão dimensional/alienígena” e “pesquisa paranormal”. Esses esquemas são uma construção cultural, o que os torna até certo grau universais. As narrativas criam, utilizam e modificam os esquemas que vão se desenvolvendo com o passar do tempo e, de certa forma, refinando-se. Por isso a maioria dos filmes modernos não precisa de explicações detalhadas dos esquemas utilizados, pois já foram apresentados e apreendidos através de outros contatos do espectador com esses mesmos esquemas em outras obras. Podemos ver todos os esquemas citados nesse jogo no filme E.T., o extra-terrestre, e se fizermos uma pesquisa mais ampla, provavelmente encontraremos esses esquemas em obras anteriores.
Já a história é um elemento muito mais complexo. Ao entrar em contato com um filme, o espectador procura dar sentido ao que está vendo, principalmente quando o argumento não lhe dá informações o suficiente para a compreensão total. Dessa forma, começa a inferir elementos ao filme, normalmente organizados de maneira causal e/ou temporal. Por exemplo, se os eventos de um filme estão fora de ordem, o espectador tentará organizá-los de forma cronológica; caso não haja causas aparentes para alguma cena, o espectador irá teorizar quais eram, além de imaginar quais serão as consequências do que ele já está observando, deixando claro que as inferências não se tratam apenas do momento em que o filme ocorre, mas também sobre seu passado e futuro. Além das inferências, também faz parte da atividade do espectador criar teorias, processo que normalmente ocorre mais fluidamente quando os esquemas usados pelo estilo são mais canônicos. Desde o início de um filme, buscamos tentar prever sobre o que o filme se trata, quais são os esquemas utilizados e, principalmente, o que ocorrerá adiante, como a história irá se encerrar. Essas hipóteses podem ser confirmadas, negadas ou até deixadas em suspenso quando, ao final do filme, ainda não fica claro qual seria a conclusão, os “finais em aberto” como dizemos no senso comum. Porém, o importante para a história é o próprio processo de formulação: podemos observar claramente novas hipóteses sendo negadas pelo espectador antes mesmo de ter dados concretos para isso, apenas por sua primeira hipótese ser mais forte, como também, quando uma hipótese é negada pelo argumento, logo uma nova tomará o lugar, normalmente absorvendo elementos daquela que foi deixada de lado. A história é a construção imaginária resultada de todo este processo. Logo, podemos dizer que para cada espectador teremos uma história ligeiramente diferente, com poucas exceções em que o argumento não dá muito espaço para a teorização. (Bordwell, 1996)
Apesar de ser uma teoria que trabalha com a narração de filmes, podemos usá-la para compreender um jogo, como nesse artigo, pois ambos são obras narrativas de ficção. Porém, temos que realizar algumas ressalvas, pois a linguagem dos filmes é diferente da dos jogos. Dessa forma, para a análise do estilo desse jogo será trazido, o máximo possível, comparações com jogos anteriores, para que possamos usar a linguagem própria dos jogos. O primeiro elemento que chama muita atenção é que outros jogos narrativos de um jogador e contemporâneos a Control tendem a oferecer para o jogador a oportunidade de uma variabilidade de finais ou, pelo menos, uma possibilidade de explorar o mapa do jogo até a exaustão. Entretanto, este jogo só possui um final possível, sendo que as missões principais serão sempre as mesmas, não importando como as realize e, além disso, ocorrerão sempre na mesma ordem, isso limita a ação do jogador sobre o jogo, aproximando-o da narrativa de um filme.
Além desse elemento, só temos o controle das ações da protagonista nas partes de exploração e combate. Quase todos os diálogos ocorrem através de “cinemáticas”, recurso usado pelos jogos há muito tempo que, quando cumprido certos requisitos, mostra-nos uma pequena cena, na qual não podemos realizar ação nenhuma, ou quase nenhuma, como se fosse propriamente um pequeno pedaço de um filme. Tendo pouquíssimas cinemáticas em que podemos escolher as falas da personagem e nenhuma que realmente altere o rumo do argumento, no máximo podemos perguntar coisas para os outros personagens, que muito raramente tem a ver com as missões principais, ajudando-nos a construir a história como um todo, mas sem alterar seu curso.
Outro elemento digno de nota sobre as cinemáticas de Control é que elas são preenchidas pelos pensamentos de Jesse, ferramenta comum na literatura, mas pouco usada tanto nos filmes quanto em jogos. Mas, o mais importante é que, nessa narração dos pensamentos, podemos perceber a presença constante, de certa forma velada, da entidade Polaris. Ela está constantemente ouvindo os pensamentos de Jesse e conversando com ela telepaticamente ou, em outra interpretação, literalmente de dentro dela, já que Polaris pode ser interpretada como a parte de Hedron que está no corpo de Jesse, aconselhando, empoderando e a protegendo. Essas “conversas” ocorrem no jogo de uma forma muito interessante: ouvimos o que Jesse está pensando, então há um efeito na tela e ela muda a forma de pensar, ou então pensa uma resposta para uma entidade a qual não vemos nem ouvimos. Logo, Polaris em si é um mistério até o final do jogo, e suas falas são um mistério, só podemos inferi-las pelas respostas de Jesse, mas nunca saberemos com certeza, sendo essa a única omissão de informação nas missões principais.
Se não há muito espaço para inferências por omissão de informação nas missões principais, há espaço de sobra quanto ao deslocamento temporal e causal. Mesmo que a maior parte dos mistérios principais sejam revelados, isso só ocorre muito tardiamente, a partir do ponto em que Jesse reencontra com Dylan. Até esse momento, a narrativa só nos leva a explorar um pouco o espaço “físico” da Antiga Casa e ajudar a Agência a lidar com a invasão, conhecendo vários personagens diferentes que, aos poucos, se tornam a equipe de Jesse, a nova diretora da Agência. Apesar de sabermos desde o início que Jesse teve um encontro com o paranormal em sua infância e que, concomitantemente, seu irmão foi levado pela Agência, só é revelado o que aconteceu próximo ao final do jogo, além de ser só nessa parte que é explicado o que então seria a Polaris. Quanto ao deslocamento causal, só nos é revelado o porquê de Dylan ser levado, o porquê ninguém estranha que Jesse tenha se tornado a diretora e o que levou a invasão do Ruído no final das missões principais. É interessante que nesse ponto o próprio jogo coloca as hipóteses dos jogadores à prova; quando estamos indo na direção de destruir o projetor de slides, roda uma cinemática na qual a própria protagonista realiza um resumo de tudo o que ocorreu, explicando todos esses pontos para os jogadores desatentos. Por estes motivos podemos pensar que a narração principal do jogo ocorre quase que literalmente como um filme, mesmo que por outras linguagens.
Porém, ao contrário das missões principais, os elementos extras do jogo, como missões secundárias, papeis oficiais que Jesse encontra por toda a Antiga Casa e afins, estão cheias de omissões que, mesmo não sendo importantes para cumprirmos as missões principais, também são elementos que nos revelam informações sobre o que acontece dentro do mundo do jogo. Alguns dos principais exemplos disso estão nos vários Objetos Alterados que Jesse encontra em seu caminho. Mesmo que muitos deles possuam alguma história própria, que normalmente temos contato através dos papeis oficiais ou gravações, há muitos em que a história está incompleta, até porque em alguns desses casos a própria Agência não sabe do que realmente se trata, como a fornalha que não só parece um ser vivo, pois fala com quem se aproxima muito, mas também parece alguma entidade divina que recebe os “sacrifícios” de lixo. Outro caso é a existência de um ser chamado “Antigo” que, apesar de ficar implícito que ele fazia parte do Conselho Diretor, não há nenhuma informação sobre o que ele é exatamente. Os documentos oficiais são uma ampla forma de informação sobre a Agência, sobre as pesquisas que ela realizava e sobre acontecimentos que ocorreram dentro da Antiga Casa. Porém, quase todos eles possuem longas rasuras, o que nos permite apenas informações parciais como, por exemplo, em um papel que descreve testes realizados com um Objeto Alterado. Pelo o que foi informado, sabemos que todas as pessoas que habitavam a sala no momento dos testes sofreram um fim terrível, mas não qual foi, pois esta parte está rasurada.
Diegese
O uso da expressão diegese neste artigo está relacionado à construção do mundo em que se passa o jogo, suas regras, sua lógica interna e seus principais conceitos, considerando que a narração principal terá uma sessão própria. Há quatro conceitos principais criados pelo jogo e, mesmo que muitos já tenham aparecido na introdução, serão ampliados nessa sessão. Primeiro e mais importante, temos o conceito de “Eventos de Realidade Alterada”, que supostamente ocorrem quando forças ou entidades de outras dimensões ou plano de existência invadem a nossa, na forma de energias ou ressonâncias desconhecidas, e alteram a realidade perceptiva. Possuem aparente relação com a mente humana, por exemplo o caso numerado pela Agência como 35 altera a realidade de um acontecimento para que siga o roteiro de uma história fictícia. “Lugares de Poder” são paralelos a esses eventos, são localizações, construções e afins que possuem poder e lógica próprias, isolando-os da realidade concreta. A Antiga Casa, centro de operações da Agência, é um dos maiores exemplos desses lugares: ela é totalmente invisível para quem olha por fora, exceto casos especiais como os funcionários da Agência e pessoas guiadas a ela como Jesse; é muito maior por dentro do que aparenta por fora, além de que seu espaço interno está em constante mudança. Supostamente essas localizações podem ser criadas a partir de “Eventos de Realidade Alterada”, porém não há certeza disso, mas mantém a mesma lógica, já que eles ressoam com outros planos de existência e também são organizados a partir do pensamento humano. A Antiga Casa, por exemplo, uma representação da ideia coletiva de ser o primeiro prédio de Nova York, não permite que nenhuma tecnologia moderna entre, como celulares. Outra curiosidade importante é que só nesses lugares Objetos Alterados e Objetos de Poder podem ser contidos sem ligação com um usuário.
“Objetos Alterados” estão sempre ligados a um Evento de Realidade Alterada, seja criados por esses eventos ou os causando. São objetos que foram alterados ao ressoarem com outro plano de existência, provocando efeitos estranhos ao redor de si. Sua relação com a mente humana é ainda mais próxima do que nos casos anteriores, já que, como é apresentado no próprio jogo, são objetos “arquetípicos” que funcionam como recipiente de uma imagem comum, como um farol de trânsito que impede qualquer movimento ao seu redor caso sua luz esteja vermelha. É interessante notar que apesar de não possuírem mente própria, possuem algum tipo de programação que os leva a agirem sempre de uma mesma forma. Por fim, “Objetos de Poder” são similares aos alterados, porém possuem conexão direta com plano astral e ao Conselho Diretor, há dúvidas se eles se tornaram Alterados por esta conexão ou se eram Objetos Alterados que passaram a ter a conexão posteriormente. Além de poderem causar efeitos estranhos em sua redondeza, podem ser ligados a pessoas com habilidades paranormais, concedendo seus poderes a essas pessoas. Há um ritual elaborado para que isso ocorra: o futuro usuário deverá tocar no objeto e, caso o Conselho o julgue digno, irá transportá-lo ao plano astral, onde deverá realizar uma série de provas. Caso tenha sucesso terá o poder do item, caso falhe ou não seja considerado digno pelo Conselho, morrerá instantaneamente. O maior exemplo desses itens é a própria Arma de Serviço, objeto que, além de funcionar como vários tipos de arma de fogo, também concede ao seu usuário o poder de comandar a Agência.
Em todos os conceitos apresentados, há sempre dois elementos que se mantém o mesmo: todos são afetados por alguma ressonância, sendo que qualquer aparição paranormal ocorre por meio de vibrações; todos são ligados à mente humana de alguma forma, sendo que o jogo cita Carl Gustav Jung e suas teorias de arquétipo e inconsciente coletivo para sustentar essa regra. Ressonância no jogo é entendida como a própria vibração ou energia, não necessariamente sua transferência, porém que se amplia quando dois objetos estão sob seu poder. É mantida sua relação com o som, como por exemplo quando o Ruído se apossa de certas pessoas sem a intenção de combate, mas para que repitam frases aparentemente sem sentido, em uma frequência específica, o que aparentemente amplia o alcance do próprio Ruído. Porém vai muito além disso, todos os eventos e objetos paranormais do jogo possuem alguma relação com alguma ressonância, chegando ao ponto de que há papeis de pesquisa dentro do jogo que apontam que os próprios seres de outras dimensões sejam compostos quase inteiramente de ressonância. Nesse sentido, a ressonância não é só a vibração, mas é a própria existência do paranormal em nossa realidade como, por exemplo, os efeitos dos Objetos Alterados e de Poder são apenas a metade observável de suas próprias ressonâncias. Além disso, é claro que algumas ressonâncias possuem vontade e inteligência próprias, como é o exemplo do Ruído, Polaris e o próprio Conselho Diretor.
A relação de ressonância e o paranormal já existe no imaginário ocidental, principalmente quando estamos falando de diversos planos, como neste jogo. Um exemplo é a série The magicians, que possui um episódio no qual várias pessoas de uma cidade passam a vibrar em uma frequência diferente de nosso mundo e, por este motivo, são transportados para outro plano de existência. Podemos supor que esta imagem surja da experiência do humano com o invisível ou de “outros mundos”, proveniente do contato com outras realidades psíquicas, como o inconsciente que, apesar de ser interno, é sentido como algo externo, por ser experimentado como um não-eu.
O jogo usa a expressão arquétipo, citando Jung, para representar uma ideia coletiva, seguindo a seguinte lógica: é comumente associada a algum objeto certa ideia, isso se propaga por vários meios se tornando um conceito coletivo como, por exemplo, no caso de uma lenda urbana, sendo que em um documento presente na Antiga Casa está escrito explicitamente que as lendas urbanas são a evolução do conceito de arquétipo de Jung. Quando muitas pessoas pensam a mesma coisa sobre um mesmo objeto, este tenderá a ter aderência de forças sobrenaturais, tornando-se um Objeto Alterado ou até um Objeto de Poder caso entre em contato com o Conselho Diretor. Segundo a lógica do jogo, podemos dizer, no caso citado do semáforo, que o conceito “semáforo” é um arquétipo do movimento, da espera e da pausa. Há dois erros graves nestas interpretações: o primeiro é na própria definição de arquétipo e inconsciente coletivo usado pelo jogo, o segundo é na diferenciação que Jung faz entre símbolo e signo, sendo que no jogo é uma coisa só.
O jogo aponta que o inconsciente coletivo seria um repositório das imagens coletivas da humanidade, que mudam de acordo com a cultura e o tempo, sendo que na visão de Jung (2012a) o inconsciente coletivo é o repositório dos arquétipos, formas universais nas quais toda a fantasia, pensamento e percepção se baseiam. Nesse sentido, elas permanecem fixas não importando o tempo ou cultura, mas sim sua expressão, a imagem que ela produz, pode ser alterada. Além disso, o inconsciente coletivo está além do campo da consciência, de forma que nunca poderá ser percebido diretamente por ela, que apenas sente seus efeitos. Logo, podemos perceber que o jogo confunde a imagem produzida por um arquétipo com o próprio arquétipo.
O segundo erro é apenas uma expansão do primeiro. Na visão de Jung (2012b), uma imagem que é uma representação direta de algo é um signo, sendo o símbolo a melhor representação de algo que a consciência ainda não consegue perceber totalmente. No momento em que o conteúdo de um símbolo se torna um conceito ou uma imagem conhecidos, isto é, consciente, o símbolo está morto. Nesse sentido, um símbolo contém uma infinidade de possibilidades de significados, pois retrata algo que ainda está além da consciência e, portanto, quando damos um significado direto para o símbolo o tornamos estéril. A partir da compreensão dos dois erros, podemos perceber que o que o jogo chama de arquétipo na verdade é uma imagem estéril com significado único, o que se torna mais grave quando o sentido é literalizado como um objeto concreto, sem significar nada mais do que é observado.
A concepção junguiana está de acordo com as teorias do imaginário, que compreendem a imaginação como uma construção fluida a partir do diálogo do ser com o mundo. A imaginação não é entendida como subordinada às imagens que captamos pelos sentidos, mas sim a habilidade de deformar essas imagens, entendendo que o sujeito que observa também influi em como a imagem é recebida. A imaginação possui estruturas mais ou menos fixas, que podemos denominar como Mitemas, que a estruturam. Apesar de fluida, a imaginação sempre retrata a mesma essência humana, mudando sua forma para que se adéque aos novos interlocutores. Por este motivo podemos afirmar que o imaginário organiza o real: nosso contato com o que está fora de nós se dá através das imagens que produzimos e que são produzidas para nós, sendo que podemos, consciente ou inconscientemente, alterá-las. (Wunenburger; Araújo; Almeida, 2017)
A partir do apresentado podemos supor que o que o jogo quis expressar, apesar de usar uma aproximação equivocada, é esta habilidade do ser humano de alterar a realidade percebida, desde que compreendamos o real como as imagens que construímos a partir do contato com uma realidade concreta inalcançável pela psique humana.
Narração principal
Como a maioria dos jogos do gênero, a narração principal (o argumento apresentado pelas missões principais) de Control possui a estrutura heróica, na qual uma personagem se aventura em terras desconhecidas. Estudada a fundo por Joseph Campbell, a aventura heróica ou monomito possui três etapas principais: a separação, a saída do ambiente conhecido, normalmente representado pelo ambiente familiar ou pelo mundo humano: a iniciação, na qual o herói realiza uma série de provas e adentra o mundo mágico; por fim, o retorno, em que, depois de se realizar neste mundo mágico, volta ao mundo humano para compartilhar suas conquistas e sabedoria. (Ferreira-Santos; Almeida, 2020)
A jornada do herói, durante a fase de separação, se inicia por um chamado, algo convida o herói a sair de seu espaço conhecido e, claramente, esse chamado pode ser recusado. No caso de Control, podemos localizar dois ou até três chamados distintos. (Ferreira-Santos; Almeida, 2020) O primeiro chamado ocorre ainda na infância da protagonista: ao lidar com o Projetor de Slides, Jesse toma conhecimento sobre o paranormal, além de literalmente ter acesso a outros mundos. Mesmo que suas ações tenham solucionado os problemas na época, já que foi ela, através da orientação de Polaris, que conseguiu fechar todos os portais, podemos considerar que esse chamado foi pelo menos parcialmente recusado, pois, após a resolução do incidente, Jesse tenta viver uma vida comum, ainda que atormentada por essa experiência. O segundo chamado ocorre anos mais tarde, próximo ao início do jogo. Após muitos anos vivendo uma vida aparentemente comum, Polaris, que não havia se comunicado com a protagonista desde sua infância, volta a falar com ela e a guia até a Antiga Casa, prometendo que lá ela encontrará seu irmão mais uma vez. O possível terceiro chamado, que nada mais é do que uma extensão do segundo, é quando ela propriamente toma posse da Arma de Serviço, o que a coloca como diretora da Agência, mesmo que não assuma esse papel neste ponto da narrativa.
Entre a fase da separação e da iniciação temos o encontro com o guia, que dá as ferramentas e conhecimentos necessários para que o herói se prepare para sua jornada. (Ferreira-Santos; Almeida, 2020). Jesse possui uma infinidade de guias, cada um agindo de uma forma diferente. Primeiro podemos identificar a própria Polaris, que a leva até a porta para o outro mundo e lhe dá os poderes necessários tanto para resistir à corrupção do Ruído, quanto para poder aceitar as bênçãos dos outros guias, pois o jogo deixa implícito que Jesse só consegue se sincronizar com os vários Objetos de Poder que encontra devido à presença de Polaris. O segundo guia, o faxineiro-deus Ahti, guia a protagonista através dos corredores da Agência no início e, enquanto o jogo se desenrola, aparece diversas vezes para mostrar o caminho e o que a protagonista deverá fazer para resolver o problema apresentado. O maior exemplo disto pode ser observado próximo ao final, quando Jesse precisa cruzar um labirinto que está em constante mudança e Ahti a chama para conversar e revela sua verdadeira natureza, além de interferir no labirinto para que ela possa encontrar o caminho. O terceiro guia a aparecer é o Conselho Gestor que, através da Arma de Serviço, concede-lhe as ferramentas necessárias para iniciar sua missão e, durante o jogo, oferece vários outros Objetos de Poder, muitos que são absolutamente necessários para cumprir partes de sua jornada. Por fim temos a Emily Pope, que funciona de certa forma como uma bússola moral, lembrando que caso ela abandone seu dever, não só a Agência será destruída como o mundo todo. Além disso, explica o funcionamento burocrático da Agência, com quem Jesse deverá conversar para realizar seus objetivos, e como funcionam seus aspectos técnicos como, por exemplo, o sistema de segurança que havia lacrado o prédio.
A primeira etapa da fase de iniciação é a passagem do limiar, que representa a entrada no mundo mágico da aventura e a morte da pessoa comum para o nascimento do herói (Ferreira-Santos; Almeida, 2020). No jogo isso ocorre de duas formas principais. A primeira é quando a protagonista efetivamente entra na Antiga Casa, o que a narrativa é muito feliz em coincidir com o início do jogo, pois a aventura do herói começa assim que atuamos como jogador sobre o mundo do jogo. A segunda ocorre sempre que Jesse encontra um Objeto de Poder e é transportada para o plano astral e, nesse plano, precisa realizar pequenas tarefas utilizando o item recém adquirido para demonstrar que é merecedora desse novo poder.
A próxima etapa são as provas em que o herói será submetido a vários desafios, sendo que estes levarão ao desenvolvimento pessoal, descoberta de si e autorrealização (Ferreira-Santos; Almeida, 2020). No jogo, a própria atividade do jogador, as lutas que precisamos superar, os segredos que descobrimos e a exploração do prédio constituem essas provas.
A última fase, a do retorno, representa a volta do herói para o mundo humano, transformado com o que foi adquirindo durante sua aventura, momento em que o herói se torna um exemplo e um iniciador de novos discípulos. O retorno bem realizado também significa o amor fati, o encontro com sua verdadeira essência e a realização do seu destino, da sua missão e o amor por quem se é verdadeiramente (Ferreira-Santos; Almeida, 2020). No caso de Control, depende muito da interpretação do jogador se o retorno foi bem realizado ou não. Após a “morte” de Hedron, Jesse fica perdida dentro de uma fantasia criada pelo Ruído, na qual ela é uma secretária dentro da Agência e não sua diretora. Porém, depois de muita insistência e auxílio de Ahti, consegue sair desta ilusão e, pela primeira vez, se afirma como a diretora da Agência, cargo que até então estava recusando, mesmo que imposto a ela. Logo, podemos interpretar que no final do jogo ela cumpriu sua missão, não só combateu a invasão, mas assumiu o cargo como diretora e, através dele, conseguiu realizar um impacto significativo em sua volta, usando o poder da Agência para proteger o mundo. Por outro lado, ela nunca sai propriamente da Antiga Casa, ou seja, ela nunca sai do mundo mágico e volta ao mundo humano. Interpretar dessa forma significa que Jesse nunca cumpriu totalmente sua missão heróica, logo, não cumpriu seu destino, não virou ela própria uma iniciadora. Vale notar que esta não saída pode ser apenas um recurso do jogo, uma maneira de prolongar a história de forma artificial, mesmo que a aventura em si já esteja concluída. Este recurso é muito utilizado nos jogos, com o objetivo de poder criar expansões, que são continuações da história original ou histórias paralelas, o que acarreta novas compras.
Considerações finais
Como expressado na última sessão, Control é uma reedição da aventura heróica que, como muitos outros jogos similares, coloca o jogador no papel de enfrentar, junto à protagonista, os desafios que esta jornada proporciona, representados no jogo pelos combates, exploração e pelos quebra-cabeças que precisamos resolver para completar as missões principais. A jornada do herói pode ser entendida como a jornada do ser humano pela própria vida: somos tirados de nosso conforto original, postos em um mundo hostil para que, após enfrentar este mundo e conquistarmos os louros da vitória, possamos reafirmar a nós mesmos, nossa existência, nossa personalidade e, em última instância, nosso destino. Porém, o que leva a tantas variações dessa estrutura não é apenas sua força avassaladora, mas sim a concepção de que cada um possui seu próprio destino, que varia de acordo com suas aspirações e suas capacidades.
Então qual seria o destino de Jesse, a protagonista desse jogo? Ou, em outras palavras, o que significa nesse jogo, tornar-se a diretora da Agência Federal de Controle e combater uma invasão de entidades paranormais? Para respondermos essa pergunta, uma divagação de Jesse sobre a existência humana é muito interessante: ela descreve que vivemos em um quarto com um pôster na parede e, no geral, nos contentamos com isso, acreditamos que todo o mundo é este quarto. Porém, algumas pessoas como ela sentem atração irresistível pelo que está atrás do pôster, e então o retiram para entender o que está do outro lado, lidando com o estranho e o desconhecido. Sua aventura pode ser resumida por esta divagação: inicialmente uma criança normal é posta em contato direto com o paranormal, experiência que o próprio jogo descreve como uma rachadura no pôster e, após se assustar e recuar por um tempo, como faria a maioria das pessoas, ela escolhe arrancar o pôster e mergulhar no que está além.
Se considerarmos o que colocamos na sessão de diegese, de que o jogo fala da experiência humana com os outros mundos e com as construções do imaginário, retirar o pôster significaria não só o reconhecimento de que existe algo além da consciência perceptiva, mas também que nossa percepção do mundo ocorre por imagens construídas por nós mesmos e que, de certa forma, possuímos algum controle sobre sua construção, mesmo que mínimo. Nesse sentido, podemos pensar que tanto o nome da Agência quanto o nome do próprio jogo são felizes ao demonstrar a tese de que exercemos algum grau de controle efetivo sobre a realidade, desde que percebamos sua verdadeira natureza.
Psicologicamente também poderíamos associar o jogo ao mito de Perséfone que, ao ser raptada por Hades, mergulha no mundo dos mortos, na esfera do inconsciente, para que se torne sua soberana. Assim como a deusa, Jesse possui contato com o aspecto divino, aqui representado como o paranormal, desde muito cedo em sua vida, através do contato com o Projetor de Slides. Mesmo que ela tente viver uma vida comum depois deste acontecimento, é raptada definitivamente em sua busca por seu irmão, de forma que Hades, o raptor e a própria morte de seu estado anterior, pode estar sendo representado por seu irmão, que é quem a coloca em sua jornada. Por outro lado, o Conselho Diretor também poderia exercer o papel de Hades, já que lhe oferece a Arma de Serviço que, como a romã, efetiva sua ligação com o outro mundo. Entretanto, o próprio Ruído, ao agir como antagonista principal da história, dando um propósito maior à travessia, pois, através dele, é possível concretizar o objetivo próprio do herói de “salvar a humanidade”, também pode estar simbolizando Hades.
Neste sentido, Jesse não só adentra a Antiga Casa, que por si só é um mundo mágico, mas através dela vai a vários outros mundos como, por exemplo, o plano astral, já que a Casa é canonicamente um ponto de ligação entre vários mundos. Durante sua jornada Jesse entra em contato com vários Objetos de Poder, que fortalecem seus próprios poderes paranormais e, justamente por aumentar esses poderes, consegue poderes mundanos. Isso ocorre principalmente com a Arma de Serviço, no início do jogo, que fornece poderes paranormais ao se transformar em várias armas, mas também mundano ao transformá-la em diretora. Por este motivo podemos pensar que ela não só caminha entre esses dois campos, mas é verdadeiramente soberana neles o que, mais uma vez, a aproxima de Perséfone que possui poder sobre o mundo dos vivos, por causa de sua herança maternal, e poder sobre o mundo dos mortos devido à sua união com Hades.
Referências
Bordwell, David, La narracíon en el cine de ficción. 1ed Barcelona: Paidós, 1996
Ferreira-Santos, Marcos; Almeida, Rogério de, Aproximações do imaginário: Bússola de investigação poética. 2ed, São Paulo: FEUSP, 2020
Jung, Carl Gustav, Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 8ed, Petrópolis: Vozes, 2012a
Jung, Carl Gustav, Tipos psicológicos. 5ed, Petrópolis: Vozes, 2012b.
Imaginação e Cinema. In: Wunenburger, Jean-Jacques; Araújo, Alberto Filipe; Almeida, Rogério de. (Org.). Os trabalhos da imaginação: abordagens teóricas e modelizações. 1ed.João Pessoa: Editora da UFPB, 2017, v. , p. 264-278.