Publicado pela primeira vez no site do IJEP no dia 19/06/2019

   Uma das principais características humanas é sua capacidade de criar algo novo. Podemos criar todo um novo universo apenas com as pontas dos dedos, enquanto estamos digitando uma nova história, quando usamos as mãos para criar quadros ou esculturas, por conseguir imaginar uma situação realmente nova. De todas as formas de se criar, a forma que mais me afeta é a criação de personagens de RPG. Nesses jogos podemos criar um alter ego que viverá aventuras incríveis, ou sobreviverá nas condições mais insalubres e sinistras.

   O RPG é, em essência, um jogo de criação e interpretação de personagens. Podemos perceber isso no seu próprio nome, Role-Play Game, que em português é “jogo de interpretação de papeis”. Esta modalidade de jogo é extensa, há milhares de títulos no mercado, disponibilizados em forma de livros, contendo cada um suas próprias regras e universo. Muitos dos mais populares tratam de se aventurar na Idade Média como verdadeiros heróis em busca de cumprir uma grande jornada; mas muitos outros possuem uma visão mais sombria do mundo: ao invés de assumir o papel de herói, assumem o papel do monstro, que muitas vezes apenas tenta sobreviver a grandes diversidades, tanto internas quanto externas. Nos jogos de RPG você pode ser virtualmente quem você quiser, pois sempre haverá algum que terá a temática que combine com o personagem que você busca, além de muitos modelos de regras genéricos que podem ser usados como base para qualquer mundo que se pretenda criar.

   Esta modalidade é jogada da seguinte maneira: primeiro deve-se juntar o grupo de pessoas que está interessado em participar; após isto, escolhe-se o título que todos irão participar; o narrador é eleito entre os participantes, enquanto os outros criam seus personagens que serão os personagens principais da história narrada, sendo que a história é contada entre todos. Os jogadores devem agir e falar realmente como se fossem os seus personagens, com pequenas exceções onde são proclamadas ações, como usos de poderes, armas de fogo e coisas afins que não podem ser encenadas totalmente. O narrador (mais conhecido como mestre) tem três funções básicas: a primeira é a de criar uma história dentro do universo do jogo escolhido; a segunda é a de ser o juiz da regra – é dito que a regra de ouro em todos os jogos é “caso o que o mestre diga e as regras do livro sejam diferentes, dê prioridade ao que o mestre diz”, mesmo que esta regra muitas vezes cause conflitos no grupo em alguns momentos; e a terceira função é de criar os personagens secundários e/ou antagonistas dos principais. Já os jogadores (por convenção o mestre não é considerado um jogador) têm o papel de criar um personagem principal para a história que o mestre irá narrar e, para isso, cada jogo possui suas próprias regras. Contudo, a fórmula geral é baseada em três frentes: a primeira é uma história de como o personagem chegou até aquele ponto, geralmente isso é feito com o auxilio do mestre e o próprio livro já fornece algumas dicas; então, são delimitadas algumas das características da personalidade, sendo que a maioria dos livros recomendam não fechar totalmente num primeiro momento, para que a própria interpretação dê os toques finais; e, por fim, é criado a ficha, uma folha estilizada onde é  anotado o que ele pode ou não fazer, normalmente em valores numéricos, para que as resoluções das ações dos personagens possam ser definidas por dados de diferentes tipos. A forma que isto acontece varia de jogo a jogo, mas ou o valor anotado na ficha é somado ao resultado do dado, ou se define quantos dados serão usados em cada jogada.

   É possível observar que de uma boa partida de RPG para uma obra literária é apenas um passo. Um exemplo disso é que o desenho popular antigamente “caverna do dragão” era, na verdade, uma partida do jogo Advanced Dungeon & Dragons, que se tornou tão interessante que resolveram transformar em uma animação. Logo, não parece um absurdo considerarmos que as mesmas técnicas de análise das obras de arte não possam ser usadas para descrever as histórias e personagens que aparecem nesses jogos.

   Carl Gustav Jung apresenta uma forma de compreender a obra de arte que difere muito da de seu tempo. Enquanto muitos viam a arte como uma forma de sublimação de desejos reprimidos, colocando a arte como neurose, ou pelo menos como uma forma que o artista encontra para fugir de uma, Jung apontou que a obra de arte transcende seu próprio criador. Para  autor, existem dois tipos: a “verdadeira arte” é uma “visão originária”, algo de fantástico e numinoso que abala seu criador e que, geralmente, está além de sua compreensão e, muitas vezes, o artista é “apenas” um visionário que conseguiu perceber uma resposta da alma humana coletiva para a época em que vive. Nesta concepção, a visão originária seria basicamente o choque de um arquétipo com a consciência, que geralmente é tão arrebatadora que nem a própria pessoa que a vive consegue explicá-la. Porém, nessa própria tentativa de explicar essa experiência, a arte é criada. O segundo tipo é por ele denominado como “arte psicológica”, aquela que é moldada pela consciência do autor a partir de sua vontade. Entretanto, diz ele, não podemos deixar de considerar a projeção inconsciente de elementos obscuros ao criador.

   Entre todas as formas de criação que existem dentro de um RPG, foquemos na criação dos personagens pelos jogadores (pois a criação dos personagens do mestre geralmente é um processo mais simples). A partir dos estímulos iniciais dados pelo próprio livro do jogo, e algumas vezes pelo próprio mestre que já anuncia de antemão uma sinopse da história que pretende narrar, o jogador reflete sobre qual personagem quer criar, e não é raro que nessas reflexões ele se sinta arrebatado por uma ideia súbita do que ele espera do seu personagem. Aí está algo muito próximo do que Jung chama de “visão originária”. A maioria dos jogos auxilia este processo com o sistema de classes – uma espécie de estereótipos de personalidade e habilidades que o personagem terá –, que são perfeitos evocadores das imagens arquetípicas, pois geralmente são: o guerreiro, o mago, o paladino, o bardo, entre outras. Depois que essas imagens são evocadas, algo próximo à “arte psicológica” acontece: o jogador preenche as imagens com o que ele tem em seu próprio inconsciente e sua consciência. Nesse momento o jogador, mesmo que não o faça intencionalmente, coloca sua marca pessoal no personagem que está sendo criado: essa personalidade certamente terá características marcantes do jogador que a criou, sejam essas características de seu Ego consciente, sua noção de eu; de sua Persona, o que ele busca ser e demonstrar; de sua Sombra, o que ele é, mas evita ser; ou até, muitas vezes, de seus Complexos, nodos de energia em temas angustiantes para a pessoa.

   Para jogadores mais experientes, e que conhecem bem as pessoas que estão jogando com ele, é interessante perceber que atrás das generalizações a partir da classe do personagem (ou qualquer sistema semelhante a isso) existem elementos neste personagem que são únicos, certamente só aquela pessoa poderia criar aquele personagem, mesmo que já exista algo muito similar em séries, filmes, livros e afins. É muito mais interessante quando essas características são as que a própria pessoa não reconhece em si mesma, e até aquelas que ela nega fortemente ter, até quando um personagem busca fazer o contrário do que ela realmente é, algo dela aparece nesse personagem; normalmente, nesses casos, os elementos mais renegados pelo jogador são os mais evidentes. Tudo isto nos leva a refletir que os jogos de RPG são uma excelente fonte de auto-conhecimento, assim como conhecimento de outra pessoa. Se usado adequadamente, pode até configurar como uma ferramenta para uso psicológico.

Referências:

JUNG, C. G. Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo. _____ Os arquétipos e o inconsciente coletivo.  8.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

_____ O eu e o inconsciente 23.ed. Petrópolis: Vozes, 2012. 

_____  Considerações gerais da teoria dos complexos. _____ A natureza da psique 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

_____ Psicologia e poesia. _____ O espírito na arte e na ciência 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

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