Este texto é o resultado de uma construção teórica que se iniciou nos artigos sobre o anime Serial Experiments Lain (“A concretude e virtualidade”) e nos jogos de RPG (“A alma no personagem de RPG”), O mago: a ascensão (“O despertar do mago”) e Changeling: o sonhar (“A importância do aspecto irracional”), sendo todos sobre a percepção da realidade ou sobre a dimensão artística e simbólica, e, em alguns casos, até tratando de ambos. É indicado que o leitor interessado leia os artigos citados, principalmente “O despertar do mago, pois é nele que é discutida com detalhes a capacidade humana de criar realidade, o que aqui será tomado como base. Para tanto, será trazido um anime como ilustração do fenômeno que será descrito: Re;Creators, lançado em 2017 e dirigido por Ei Aoki.

   A história se inicia quando Sota Mizushino, ao assistir um anime, nele entra e observa a luta entre Selesia Upitiria, uma personagem deste anime, contra uma garota desconhecida que traja roupa militar. Quando Mizushino está de volta ao seu mundo, percebe a presença de Selesia ao seu lado. Em seguida, encontra vários outros personagens de animes e jogos presentes em seu mundo. À medida em que a história avança, duas facções são criadas: a primeira, girando em torno de Mizushino, é constituída pelos personagens que não possuem rancor de seus autores, tendo como objetivo voltarem às suas próprias histórias; a segunda é composta por personagens que, odiando seus autores por colocá-los em tanto sofrimento apenas por entretenimento, querem não só mata-los mas, em alguns casos, destruir boa parte desta indústria para que isso não se repita com outros mundos. Mais adiante fica claro para os autores da primeira facção, ao interagirem com suas criações, que estas estavam no ponto da história em que foram adaptadas para o formato de anime ou jogo. Isto porque as obras originais em formato de mangá ou novel já haviam avançado em suas histórias e, portanto, essas criações já tinham adquirido novos poderes e memórias. Por fim, vale lembrar que os animes e jogos citados nessa história não existem de fato.

   A partir do que foi apresentado, podemos supor dois elementos da trama: primeiro que cada história é, em si, uma realidade própria e limitada, que segue certas regras criadas por seu autor, mas que se expande de acordo com a consciência coletiva; o que mais importa para definir estas realidades não é a intenção inicial do autor, mas sim a aceitação coletiva dessa obra ou, como diria o jogo mago: a ascensão, o consenso, o que todos acreditam como sendo a realidade. Isso fica ainda mais claro com o prosseguimento do anime: quando se aproximam da batalha final, os autores dos personagens da primeira facção produzem todos os tipos de poderes para auxiliar suas criações, porém, só vingam aqueles que obedecem às próprias regras internas e, além disso, aqueles que tiveram a aceitação suficiente do público. Poderes especialmente fortes ou que não fazem sentido na história original simplesmente não se materializam.

   Iniciaremos a discussão do tema deste artigo a partir de um dos elementos do jogo descrito por Huizinga (2019): o jogo ocorre em uma pequena realidade própria, “como um círculo mágico”. Além disso, será tomado também o significado do símbolo do círculo abordado por Chevalier e Gheerbrant (2012): o ponto, centro do círculo, pode representar Deus, enquanto a circunferência representa sua criação, em outras palavras, o círculo pode representar a totalidade da existência emanando de um único ponto central. Se também considerarmos a visão da “Alta Magia”,descrita por Eliphas Levi(2016), de que o humano também possui o pneuma, o sopro/verbo divino, mesmo que numa proporção muito menor do que a de Deus, podemos pensar que o humano pode ser visto como o centro de um círculo e, assim, criador de pequenas realidades. Isso nos autoriza a pensar o ser humano como um criador de sua própria pequena realidade. Se considerarmos que, como aponta Jung (2011a), toda realidade imediatamente perceptível são imagens construídas a partir de nossos sentidos e pensamentos, de forma que já há uma interpretação da realidade na sua própria percepção, podemos considerar que somos afetados pela ficção da mesma forma que somos afetados pela realidade concreta, já que ambas são percebidas como imagens.

   Isto fica claro quando tratamos da ficção: cada leitor perceberá o texto de forma diferente mesmo que, na maioria das vezes, as interpretações sejam similares já que se trata do mesmo texto. Porém, isso não acontece somente na leitura de um texto: duas pessoas observando um mesmo fenômeno perceberá coisas diferentes sobre ele. É esta interpretação que chamamos de criação de realidade, nesse caso tratando da realidade ficcional e virtual. Entretanto, há mais uma modalidade de realidade que também pode ser criada pelos humanos: a concreta. A capacidade de criação de realidade concreta é mais limitada do que as anteriores, mas ainda pode ser perceptível quando alguém constrói algo de fato no mundo concreto, como um edifício, um avião ou até uma escultura.

   Adicionando, em outra passagem sobre o simbolismo do círculo, Chevalier e Gheerbrant (2012) descrevem círculos concêntricos como representações da evolução numa mesma categoria como, por exemplo, as etapas do desenvolvimento de um monge até alcançar a libertação do ciclo de reencarnações. Ampliando essa percepção e reiterando o círculo como uma pequena realidade, podemos ver os círculos concêntricos e até a espiral como realidades dentro de realidades maiores, até atingir uma totalidade, como na visão Hindu de mundo que diz que existimos em um plano “médio”, enquanto há planos mais elevados que vão aos deuses e planos inferiores que vão para entidades similares a demônios.

   Esta visão de “planos” ou até “níveis” de realidade também pode ser entendida como um espectro, que não vai de “menos real” para “mais real”, mas sim, de uma realidade mais concreta até uma realidade totalmente virtual. Para corroborar esta tese, podemos utilizar a noção de Jung (2011b) quanto aos dois tipos de pensamento: o pensamento dirigido e o pensamento não-dirigido ou de fantasia. No pensamento dirigido, temos um esforço consciente para elaborar alguma ideia racionalmente, a própria construção desse artigo é um exemplo deste pensamento, ele se desenvolve como linguagem e possui começo meio e fim, adaptando-se às necessidades do mundo externo e sociais. Já no pensamento não-dirigido não há esse esforço, é o que acontece quando o dirigido cessa ou, muitas vezes, quando apenas enfraquece, ele ocorre naturalmente por meio de imagens e não é necessariamente linear, expressando o mundo interno e suas fantasias. Na analogia de espectro de realidades, podemos dizer que o pensamento dirigido é destinado ao lado mais concreto e o pensamento não-dirigido, ao lado mais virtual.

   Ao colocar esses pensamentos num espectro, podemos perceber que há casos em que apenas um ou outro se faz presente mais densamente e há outros nos quais eles se mesclam de alguma forma. A construção da ficção pode ser considerada como um bom exemplo dessa mescla: ela se inicia com uma fantasia, que pode ser considerada uma inspiração, à qual o autor dará uma forma, a partir da direção consciente, para que se torne mais ou menos concreta e, assim, ser exibida aos outros.

   O ponto chave desse artigo não é estabelecer a compreensão da realidade como espectro ou como uma espiral de plano, mas sim compreender como nós humanos entendemos a realidade, até porque essa compreensão múltipla da realidade não é necessariamente como a realidade é, mas sim como a vemos e/ou como a moldamos para ser. Nesse sentido, podemos supor que o próprio fato de levantar essa tese indique sua presença no imaginário, mesmo que não comumente a pensemos. Essa multiplicidade nos permeia de alguma forma, o que significa que, muitas vezes, seja possível distinguir mais ou menos entre os tipos diferentes de realidade: o que está posto diante de nós, o que foram nossas impressões parciais sobre o que está posto e o que é totalmente ficção. Porém, muitas vezes essas distinções podem ser obscurecidas: confundimos o que percebemos do objeto com o próprio objeto, isto é, transferimos para o objeto características que imaginamos lhe pertencer, em termos psicológicos, cobrimos o mundo externo com nossas próprias projeções.

   Do que foi até aqui considerado, pode soar confuso dizer que compreendemos a realidade como um espectro, até porque muito raramente nos conscientizamos sobre essas variações. Porém, essa compreensão é importante, pois trata-se da relação dialética entre pessoa e mundo, logo nos permite perceber que ao mesmo tempo que agimos no mundo este mundo age em nós e, como o mundo perceptível também é uma imagem, essa alteração pode ser resultado de uma interpretação equivocada ou exagerada.

Referências

CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 26. ed. Rio de Janeiro: José Olimpo, 2012

HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.

JUNG. C.G. Natureza da psique. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011a. 

_________Símbolos da transformação. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2011b. 

LEVI, E. Dogma e Ritual de Alta Magia. 11. ed. São Paulo: Madras, 2016.

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