Publicado pela primeira vez no site do IJEP no dia 24/03/2020

   Dando prosseguimento à série de quatro artigos, planejados sobre conteúdos do anime “Serial Experiments Lain”, este segundo artigo irá abordar elementos da história do anime e, possivelmente, de seu final. Assim, para aqueles que planejam assisti-lo, seria interessante fazê-lo antes de ler este artigo.

   A questão sobre o que é a realidade e, consequentemente, o que não é real, parece estar presente desde os primórdios da humanidade, havendo diferentes respostas, dependendo do local, da época e até das crenças pessoais. Por isso é impossível chegar a uma definição final do que seria realidade, pois sempre pode ser mudada por novos elementos, que não haviam sido descobertos até o momento em que o conceito foi cunhado. Para este artigo, tomarei a ideia de Jung de que real é tudo aquilo que causa algum efeito. Porém, nesse conceito, que inclui inúmeros fenômenos, podemos perceber duas categorias opostas de realidades: a primeira, que podemos chamar de concretude, refere-se a tudo o que é palpável, maciço, visível, etc., e a outra, que podemos chamar de virtual, diz respeito a tudo aquilo que não possui um corpo em seu sentido clássico, o que não é visível, como emoções, pensamentos e até a alma, pelo menos como uma imagem psíquica, sendo que elementos como ar e eletricidade estariam entre esses dois polos.

   O anime “Serial Experiments Lain”, que será analisado nessa sequência, parece levar esta linha de raciocínio à risca: primeiro porque ele se estrutura de forma estranha, isto é, mesmo que haja um fio condutor da história, ela não é necessariamente linear, pois elementos passados e futuros podem acontecer em ordem diferente da esperada;  eventos que ocorrem separadamente no mesmo tempo são apresentados como se em tempos diferentes e vice-versa; e, por fim, há vários elementos estranhos que confundem o espectador sobre o que realmente está acontecendo, trazendo a dúvida do que é real e o que seria uma “alucinação”, ou algo similar. Quando o espectador já está confuso o suficiente, o anime começa a apresentar, constantemente, os conceitos de “aqui” e “ali”, mostrando que até aquele ponto existe uma divisão clara de duas coisas: o local que já estamos e a possibilidade de outro local, o qual chama de Wired, a suposta internet. Num primeiro momento, alguém que esteja assistindo provavelmente irá considerar o “aqui” como real e a wired como algo irreal. Porém, isso é logo colocado em cheque, pois há coisas deste outro lado que supostamente tem mais realidade como, por exemplo, garotas mortas que, além de estar deste outro lado, usam dele para mandar mensagens; e mesmo deus parece estar deste outro lado. E mais, este mesmo deus alega que neste outro lado estão as coisas reais e que o nosso lado é um holograma, uma invenção.

   A partir destas reflexões é difícil questionar a realidade de qualquer um dos lados, mas ao mesmo tempo nunca foi colocado em dúvida que este lado possui matéria e o outro lado não a possui, o que torna válida a oposição apresentada inicialmente, sendo nosso lado “concreto” e o outro, “virtual”. A palavra virtual aqui é usada em um sentido amplo: ela representa virtual no sentido eletrônico normalmente usado, pois o outro lado é, sem sombra de dúvida, composto pela “internet” que existe no anime. Porém, também vai muito além disso, como dito anteriormente, pois os mortos, deus e um punhado de outros fenômenos estranhos estão deste outro lado, como a ressonância entre humanos e a ressonância da própria Terra.

   A oposição entre o concreto e o virtual é um tema central para o anime, o que só se torna mais evidente ao analisar os diálogos entre Lain, a protagonista, e Eiji, que de certa forma é o antagonista, e é o autodeclarado deus da Wired. Eiji diz que a humanidade não tem mais capacidade de evoluir e culpa o corpo físico por esta falta de capacidade. Então se torna óbvio que o correto seria abandonar esse corpo, mesmo que isto seja impossível em condições normais. Para ele, a criação da wired tornou possível para a humanidade abandonar o corpo físico porque, afinal, podemos transferir nossa consciência para a wired e então morrer no mundo físico. E é justamente desse mecanismo que Eiji se aproveita para virar “deus”: ele transfere sua consciência como dados para o protocolo da wired, assumindo uma grande parcela de poder sobre ela.  Porém, qual é a real implicação disso? Os humanos são seres que essencialmente vivem entre a concretude e o virtual, temos um corpo físico com suas funções vitais, mas também temos os pensamentos, sentimentos e uma série de fenômenos que não necessariamente possuem matéria, mas estão atrelados à matéria do corpo, então abandonar o corpo seria abandonar o lado concreto da vida humana.

   Primeiramente, podemos dizer que abandonar o corpo é abandonar a humanidade por si, pois nos tornaríamos só metade do que somos como humanos. Num segundo momento, é abandonar toda a substância física da existência humana e, pior, de certa forma limitar, se não extinguir totalmente, o contato com a concretude no geral. E por fim, em uma análise de cunho mais simbólico, é abandonar toda a experiência consciente pela inconsciente, assim nos tirando toda a rotina, as vivências, mas também as dores da existência como humanos. Logo, podemos dizer que, num sentido psicológico, Eiji está incentivando que abandonemos todos os dramas da sociedade, as dores físicas e psicológicas de estar vivo, a rotina, as necessidades fisiológicas, porque todos são distrações que nos afastam da realidade maior que está no virtual. Num mundo onde só existem ideias, todos estaríamos conectados, todos seriam um em busca do progresso. Lain primeiro concorda com Eiji, mas, em seguida, discorda totalmente dele. Como um programa que toma corpo, uma existência que nasce apenas do virtual e só depois alcança a concretude, ela percebe que apesar das dores que o corpo traz, ele é indispensável para um número infinito de vivências: uma viagem, conhecer lugares, ver coisas, conversar com alguém cara a cara, tudo isso possui uma nova dimensão quando adicionamos a concretude. E, por este motivo, mesmo nascendo como um suposto deus, (de certa forma, maior em termos de poderes e reconhecimento do que Eiji se torna), ela prefere seguir o caminho como humana, aceitando todos os prazeres e dores tanto do concreto quanto do virtual, tornando-se uma existência mais completa e equilibrada.

   Isto se torna mais interessante quando percebemos que todo o enredo do anime caminha vagarosamente para que o virtual tome o espaço do concreto, como em cenas em que jogos virtuais estão afetando o mundo concreto e, inclusive, muitas pessoas que morreram nesses jogos, também morrem no mundo concreto. E, ao final, Lain usa de seus poderes para criar uma realidade em que este fenômeno nem começou. Mas, para isso, ela se vê obrigada a abandonar, pelo menos temporariamente, a própria vida, pois ela, como programa, era quem estava aproximando os dois mundos. Nessa nova realidade, as ambições de Eiji também não podem ter início. E é interessante ver que, mesmo que durante todo o anime, enquanto ele estava na posição de “deus”, ele parecia calmo e racional; nessa nova realidade, ele parece um funcionário de escritório tradicional que está constantemente frustrado com sua incapacidade e falta de recursos, o que nos faz pensar que talvez ele tenha abandonado sua vida concreta por achá-la indigna, mas tenta forçar esta escolha em todos os outros, para então se tornar rei do império que construía.

Referências

JUNG, C. G. A natureza da psique. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

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