Star Wars é sem dúvida um dos universos mais famosos da cultura moderna, é um sucesso que perpassa gerações tanto pelo fato de não ser um projeto acabado, e assim se alongando até hoje, quanto pela própria fama que seus conceitos e personagens possuem, como o Darth Vader que, apesar de não ser mais um personagem ativo, ainda é um ícone cultural. Devido a esse grande sucesso, muitas coisas foram criadas a partir deste universo; o que começou com filmes se tornou séries, livros, figurines e todos os tipos de itens colecionáveis, além das referências e paródias em obras que não são diretamente relacionadas. Por este motivo, foram criadas a expressão “universo dos filmes”, que trata apenas das histórias e referências contidas nos filmes principais (os “episódios”), e o “universo expandido”, que inclui a história dos livros, séries, filmes acessórios e afins. Nem sempre o universo expandido possui tanta consistência quanto os filmes principais, pois as fontes de informações são muito maiores e muitas vezes discordam, levando em conta que nem todos os criadores desses materiais estão envolvidos com o filmes diretamente e raramente estão implicados entre si.
Um dos temas mais famosos desse universo é a Força, sendo seus usuários os Jedis e os Siths. Ambos os lados acreditam que a Força se divide entre dois lados: o luminoso e o lado negro. Desse ponto de vista, os Jedis são conhecidos pelo lado luminoso e os Siths pelo lado negro. No universo expandido, existem dois livros que serão a base para a maioria das informações que irei trazer para este artigo: O caminho Jedi e o Livro dos Siths,ambos escritos por Daniel Wallance. O primeiro livro é um manual criado pelos próprios personagens do universo para os novos Padawans (aprendizes de Jedi) para explicar as principais filosofias, a visão deles sobre a Força e os poderes que eles podem usar a partir dela, a hierarquia e como funciona a ordem, como criar seus próprios sabres de luz e até técnicas de lutas em estilos marciais.
O segundo livro é uma coletânea de escritos de vários personagens. O primeiro escrito é um diário de como Jedis exilados, por terem cometidos atos hediondos, encontram um planeta com uma raça conhecida como Sith, assimila sua cultura e tecnologia junto aos conhecimentos que tinham como Jedis, e criam o grupo que hoje conhecemos como Siths. O segundo é um diário sobre uma guerra em que muitos comandantes do lado narrador eram parte da ordem Sith. O terceiro escrito, conhecido como “a regra de dois”, é uma análise histórica sobre a cultura Sith e como esse grupo foi quase dizimado, apresentando regras para se evitar que isto ocorra de novo. O quarto, chamado “poder selvagem”, é uma descrição antropológica sobre as “irmãs da noite” que são uma tribo xamânica que está relacionada ao lado negro da força. O quinto, chamado “a ciência da criação da vida”, é um estudo feito por Darth Plagueis, que foi o professor do personagem Palpatine, conhecido como Darth Sidious ou imperador nos filmes. Este escrito trata sobre como usar a força para criar vida. Por fim, “poder absoluto” é um texto sobre como Darth Sidious esquematizou seu plano para criar o império.
Antes de começar a explorar as polaridades representadas pelos Jedis e Siths, parece-me interessante fazer uma exploração da Força por si. A Força é descrita pelo “caminho Jedi” como um campo energético criado por todas as coisas vivas, é algo que está em todos os lugares e em todas as pessoas, atravessa a todos, e é tanto energia cósmica como energia pessoal de cada ser vivo. Ela se dividiria em dois tipos: a Força viva, que é o próprio fluxo da vida, a própria energia vital de tudo o que existe, assim como um nível “inferior” da Força em que muitos iniciantes e usuários medianos conseguem a maioria de suas habilidades; e a Força unificadora, que seria uma instância maior da Força, está relacionada a estrelas, tempo e espaço. Esse nível mais elevado é como uma força cósmica universal que dá estabilidade para o universo, ela tem consciência própria e usuários mais habilidosos podem se comunicar com ela, podendo descobrir sobre o presente, passado e futuro, assim como eventos muito distantes fisicamente.
O mesmo livro aponta para o chamado lado negro. Se considerarmos que a Força é uma montanha emergindo da água, o lado negro seria o que ainda está por baixo desta água, e aqueles que tentarem mergulhar serão presos no lodo, sendo que as paixões, até o amor, constituem caminho para este lado. O livro dos Siths tem pouco a acrescentar a isso; no geral eles não vêem a Força dividida em dois tipos, mas apenas como um único bloco. Além disso, eles são contrários aos Jedis sobre como se aproximar dessa energia, pois acreditam que o seu usuário deveria mergulhar em suas próprias paixões porque assim ele teria um domínio completo do que a Força realmente pode ser, inclusive o lado negro. As “irmãs da noite”, especificamente, acreditam em todo um panteão de deuses que fazem parte da Força como entidades não-físicas. De certa forma, elas estão agrupadas junto aos Siths apenas pela aproximação da Força como paixão.
Vale citar que no “universo expandido” há toda uma gama de criaturas sensíveis à Força. Muitas conseguem se comunicar com os humanos e apresentam a Força em si como algo neutro, apontando que a diferenciação entre o lado luminoso e negro da Força é apenas uma diferenciação criada artificialmente pelas duas ordens.
A partir do que foi apresentado até então, podemos levantar a hipótese de que o próprio conceito da Força se assemelha ao de Self apresentado pela psicologia analítica de Carl Gustav Jung que, resumidamente, representa a imagem de Deus em todos nós, faz parte de nós todos, mas também é impessoal, é a totalidade de todos os elementos psíquicos, onde todos os opostos se mesclam em uma só coisa e, por fim, é o que realmente somos, portanto um objetivo a ser alcançado, como um ideal.
Voltando ao tópico da oposição entre Jedis e Siths, quando lemos os livros citados anteriormente é evidente como eles são colocados sempre como opostos. Um exemplo é que o código dos Siths foi criado mais ou menos como uma oposição ao dos Jedis. Justamente por isto, é interessante começarmos a comparação pelos códigos de cada facção. O código dos Jedis – “Não há emoção, há paz/ Não há ignorância, há conhecimento/ Não há paixão, há serenidade/ Não há caos, há harmonia/ Não há morte, há a Força” (Wallace, 2015, p. 7) – nos faz lembrar de Santo Agostinho quando diz que o mal é a ausência do bem, pois para os elementos emoção, ignorância, paixão, caos e morte não é dada uma existência própria, existindo apenas pela ausência de sua contra parte. Podemos pensar nisso como “só há emoção onde não há paz”. Já no código dos Siths – “Paz é uma mentira, só há paixão/ Através da paixão eu ganho força/ através da força, eu ganho poder/ através do poder, eu ganho vitória/ Através da vitória, minhas correntes são quebradas/ A Força me libertará” (Wallace, 2015, p. 47) – a primeira linha apresenta a lógica do código Jedi, mas as próximas trazem um crescente em intensidade, de uma coisa se ganha outra, até alcançar a liberdade, que é um dos principais objetivos do ponto de vista Sith.
Ao estudarmos O caminho Jedi percebemos que se trata de uma ordem com estrutura monástica, mesmo que muitos Jedis sejam chamados para outras funções como: militares, juízes, guarda-costas, pesquisadores, etc., eles essencialmente se afastam do mundo. Isso torna-se claro no costume pré-imperial em que as crianças que apresentassem potencial para Força eram levadas para os templos o mais cedo possível para iniciar o treinamento, e só podiam deixar o templo quando se tornassem um Padawan aos cuidados de um cavaleiro experiente, ou quando ela própria se tornasse cavaleiro e, mesmo assim, com liberdade condicional, pois só podiam estar fora dos templos se estivessem em missão oficial, precisando se reportar constantemente aos templos.
Os grandes ideais de “paz” e “harmonia”, que a ordem busca, vem com o grande custo de tudo o que as paixões podem significar. Isto é evidente quando apresentam que até o amor pode ser perigoso para um Jedi, já que ele deve se concentrar apenas na ordem e em seu treinamento, sendo que qualquer outra coisa é uma distração, ou pior, uma descida para o lado negro, pois qualquer uso da Força carregado de emoções pode levar o usuário a este caminho. Por fim, vale lembrar que a ordem proibia qualquer tipo de relação pessoal; era inclusive recomendado manter o máximo de afastamento possível da própria família.
Inicialmente, os Siths eram membros da ordem Jedi da qual foram expulsos porque seus métodos eram julgados como nefastos e desumanos. Eles mergulhavam nas próprias emoções, principalmente o ódio, ferindo os ideais Jedis. Quando lemos o primeiro relato do livro dos Siths há um grande foco em como eles vêem a ordem como uma instituição falida, fraca e tirânica. Para eles, a fraqueza da ordem está em não reconhecer o potencial do lado negro, recusando uma grande parcela de poder por causa de um medo bobo. Ao se entregarem para as emoções, eles acreditam que possuem a verdadeira liberdade que nenhum Jedi poderia ter. Não é difícil imaginar um Sith como um rei tirânico e hedonista, como o próprio imperador dos filmes. Porém na visão dos mesmos a tirania que eles exercem é profundamente diferente a da ordem Jedi. Enquanto os Jedis tentam nivelar seus ranques e transformá-los em seres abnegados, os Siths acreditam que apenas a verdadeira Força tem valor, logo é justo que eles, como os mais fortes, possam mandar nos fracos e aproveitar todos os prazeres que estiverem à sua disposição.
Podemos encarar a diferença desses dois lados por pelo menos dois prismas principais: o primeiro é que enquanto os Jedis sacrificam parte de sua humanidade em favor da harmonia e perfeição, os Siths abraçam a humanidade em seu aspecto mais bestial abandonando qualquer ideal elevado. Isso nos leva à segunda interpretação usando a psicologia analítica: os Jedis efetivamente buscam destruir, ou pelo menos evitar, os aspectos sombrios do mundo e de si mesmos, enquanto os Siths mergulham e vivem nessa sombra. Não há como negar que existe a propensão (que é reforçada pelos filmes) de ver os Jedis como heróis e os Siths como vilões, principalmente porque muitas vezes eles atuam nesses papeis. Porém, é importante ver que ambos os lados, de alguma forma, vivem apenas uma existência parcial, em que negam toda a possibilidade que possa existir no outro lado, criando uma verdadeira tensão entre opostos.
A tensão entre estes opostos é clara e se torna ainda maior no “universo expandido”. Para resolver esta tensão, foram criados os Gray Jedis, ou seja, aqueles que ficam no meio termo entre os dois lados, podendo canalizar a Força como um todo. Há três fatos interessantes sobre eles: primeiro, eles não existem e nem são citados no “universo dos filmes”, logo só existem nas obras paralelas; entre essas três facções de usuários da Força, eles são a mais comentada entre os fãs (alguns dizem que por ter pouco material oficial sobre eles) e o terceiro, mesmo não tendo um código oficial, os fãs fizeram uma suposição de qual ele seria: “paz e paixão me dão forças/ força e conhecimento me dão poder/ poder e serenidade me dão harmonia/ através da harmonia eu ganho vitória/ através do balanço a Força me libertará” (Sá, 2017). Este código é tanto uma fusão dos códigos anteriores como um perfeito equilíbrio do sentido que eles trazem. Esta resposta nasceu anos depois da criação das outras facções: primeiro, pelos autores do universo expandido e, depois, pelos fãs.
A partir do exposto, podemos pensar, em uma perspectiva junguiana, que os Gray Jedis poderiam representar ou desempenham o papel de função transcendente. Esta função, de acordo com Jung, é produzida pela psique, por consequência da tensão dos opostos, integrando conteúdos conscientes e inconscientes. Quando observamos os Jedis negando a sombra, eles podem representar uma consciência unilateralizada, enquanto os Siths, abraçando a sombra, aceitam o inconsciente. O nome transcendente é usado porque o elemento criado a partir da integração dos anteriores nos aproxima do Self que, como dissemos anteriormente, assemelha-se à Força. Desta forma, a obra Star Wars apresenta uma tensão verdadeiramente humana, com a qual muitos não conseguem lidar. Porém, aqueles que realmente conseguem trabalhar nesta oposição criam respostas eficientes para ela, como os Gray Jedis. Para finalizar este artigo é importante deixar claro que os Gray Jedis não são a única resposta para esta tensão, as criaturas que vêem a Força como algo neutro também são válidas como tal.
Referências
Jung. C.G. “A função transcendente” in Jung. C.G. Natureza da psique. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
______ Tipos psicológicos. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
Sá. T.G.F Jedi cinza: o guia completo. Sociedade Jedi, 2017 disponível no link
<https://sociedadejedi.com.br/2017/04/17/jedi-cinzas-o-guia-definitivo/> acessado em 31/01/2020
Wallace, D. O livro dos Sith. Rio de Janeiro: Bertrand, 2013.
_________ O caminho Jedi: Um manual para estudantes da Força 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2015.