Publicado pela primeira vez no site do IJEP no dia 21/08/2020
A empresa WhiteWolf é conhecida pela criação da franquia de jogos de RPG de mesa chamada “World of Darkness” que, como o próprio nome insinua, é uma versão de nosso mundo mais sombria e um tanto decadente, onde várias criaturas sobrenaturais existem nas margens da sociedade humana. Dentre estes jogos, o mais famoso é sobre vampiros. Porém, o foco da discussão neste artigo é o chamado “Mago: a Ascensão”. Entre os vários motivos para a escolha deste jogo está a extensa pesquisa que os autores realizaram para poder escrevê-lo, incluindo muitos elementos esotéricos usados com maestria durante a narração do jogo, sendo que muitos dos principais símbolos estão inalterados das fontes originais como alta magia, cabala e cultos orientais.
Este jogo se baseia no conceito de que certos humanos “descobrem” o poder de alterar a realidade por si. Assim, o que chamamos de magia seria uma habilidade natural que todos os humanos possuem para alterar a realidade, embora só alguns estejam “acordados” para esta possibilidade. Aqueles que estão “dormindo” para esta possibilidade criam inconscientemente, a partir dessa habilidade dormente, o consenso. Este pressupõe algo específico da realidade e, por isso, se torna automaticamente o principal inimigo do mago, que representa o agente de mudanças nesta realidade. Não fica claro no jogo quais são os pré-requisitos para se “acordar”, mas é claro que existe pelo menos elementos primordiais: o primeiro é a percepção apurada de si mesmo e da realidade, e o segundo é uma intensa força de vontade.
Apesar de parecer absurdo à primeira vista, este “despertar” representa uma função psicológica, visto que ele aparece em várias culturas e épocas diferentes junto com a capacidade sobre-humana de modificar a realidade. Esta poderia ser considerada a verdadeira habilidade humana que nos une ao divino, como um criador de cosmos. Uma das maiores capacidades da humanidade é criar e alterar a realidade. A esta altura de evolução da sociedade, isto é um fato inegável: criamos desde as ferramentas mais básicas do paleolítico até as grandes construções e artefatos tecnológicos de hoje. Neste processo modificamos totalmente o ambiente que nos cerca, como, por exemplo, construímos cidades. Para além da criação concreta material, a raça humana é capaz de infinita criação virtual: somos dotados de capacidade cognitiva e criatividade o suficiente para criarmos mundos inteiros com apenas papel e caneta. Cada história escrita é um mundo em si; cada desenho ou projeto, que pode ou não se realizar no mundo concreto, tornando-se um avião, por exemplo, ou mesmo uma nave espacial como a de Star Track, isto é, não na concretude do mundo atual, mas no constructo do mundo virtual, é uma construção de realidade, já que, para a experiência humana, o virtual e o concreto são apenas separados de forma didática, pois são aspectos de uma mesma realidade.
Porém, é preciso ressaltar que, na visão junguiana, a realidade que percebemos é puramente psíquica, pois é constituída de imagens. Estas imagens são criadas a partir dos dados colhidos pelos órgãos dos sentidos, que são interpretadas por um processo neuronal e psíquico: “entre os terminais dos nervos dos órgãos dos sentidos e a imagem que aparece na consciência se intercala um processo inconsciente que transforma o fato psíquico da luz, por exemplo, em uma ‘luz-imagem’” (JUNG, 2011, p. 241). Deste modo, não é difícil entender que a realidade que percebemos é diretamente afetada pela nossa forma de pensar, nossos preconceitos e o que esperamos desta realidade. Contudo, a relação entre a consciência e a realidade é dialética, ou pelo menos deveria ser nos casos “saudáveis”. Assim, se observarmos que a realidade impõe a nós algum grau de mudança constante, já que todo dia temos um número de interações com ela que podem nos trazer novas informações, muitas vezes nos força a ver agora o que estava além da nossa capacidade anterior, o que revela algum tipo de tomada de consciência. Como toda relação dialética, esta também é de mão dupla: com uma determinada quantidade de energia psíquica e normalmente com algum auxílio externo, podemos efetivamente mudar a realidade que vivemos, primeiro num sentido virtual e depois em um concreto, pois tudo primeiro é um plano antes de se concretizar. Porém, há muitos momentos em que fazemos isso de forma involuntária como, por exemplo, quando estudamos novas coisas que expandem nossos horizontes, ou ao conhecer algum tipo de obra de arte ou discurso público que nos faz pensar de uma forma nova e, claro, durante a terapia.
O “despertar” do mago não deveria ser considerado dentre estes eventos involuntários, mas sim como a capacidade de fazer isto intencionalmente e consciente de todos os seus elementos, de forma a expandir sua consciência modificando-se e modificando tudo à sua volta. No jogo e em suas bases místicas é dito que as pessoas em volta do mago nunca conseguirão voltar a um estado de total dormência, mesmo que não totalmente acordados. Então, o que é preciso, pelo menos no sentido psicológico (e não no metafísico), para que um humano possa despertar sua habilidade para a magia? Primeiro, e mais importante, entender que existe algo além e até maior do que si mesmo, tanto no sentido externo, como tudo o que existe no mundo que ainda não conhecemos, quanto no sentido interno trazendo a profundidade do inconsciente; em seguida, entender que a realidade que temos contato é “feita em nossa cabeça” e não a realidade em si, mesmo que baseado nela; e, por fim, entender que através de um grande esforço da “força de vontade” podemos alterar a forma que compreendemos o mundo e, assim, é como se alterássemos o mundo em si. Podemos compreender a “força de vontade” como a própria energia psíquica disponível para a consciência, que precisa ser aplicada no objetivo de expandi-la quando se busca o “despertar”. A forma que está descrito neste texto pode fazer parecer uma tarefa fácil, mas aqui está o verdadeiro esforço heroico, pois não basta apenas juntar a energia, como também canalizá-la da forma adequada.
Os dois primeiros passos descritos no parágrafo anterior referem-se à expansão da visão e, para tanto, precisamos eliminar os elementos que a turvam. Na perspectiva junguiana, os complexos preparam atitudes para dadas situações, de forma que reagimos a uma determinada situação a partir destas atitudes, não de como a situação é concretamente. (Cf. JUNG, 2011) Neste sentido, precisamos enfrentar e compreender estes complexos, para que eles não nos turve a visão. Por expansão, os vícios, que no jogo são um dos piores inimigos desta visão, podem ser compreendidos da mesma forma, pois através do vício compreende-se a realidade de forma distorcida, assim é preciso impedir seu funcionamento automático.
Quando se afasta o que distorce a visão, pode-se iniciar o treinamento da “força de vontade”, como é descrito no jogo, por meio das ferramentas e rituais que os magos se aplicam. Estas técnicas são usadas como uma espécie de auto-hipnose, pois com elas pode-se focar a energia no ponto que se quer alterar, para se conseguir o efeito desejado. Esta compreensão de treinamento fica mais clara no jogo à medida em que o mago se eleva: quanto mais forte ele se torna, menos ferramentas precisa, mesmo que possa mantê-las por capricho, pois sua habilidade de focar a força de vontade é tamanha, que não precisa de nada além da atenção consciente para atingir o efeito que procura.
Desta forma o “despertar” significa estar consciente e atento ao mundo que nos circunda, tanto interna quanto externamente, além de compreender a si mesmo o suficiente para perceber as distorções que causamos e, assim, evitar que seu funcionamento se torne automático. Mesmo que não possamos mudar a realidade concreta como os magos da fantasia, podemos sim alterar como compreendemos o mundo, alterando, consequentemente, nossa atitude frente a ele. Esta alteração pode causar mudanças no mundo que nos cerca, e as pessoas, por exemplo, reagirão de uma forma nova devido à esta nova atitude, o que muitas vezes resulta em uma melhor adaptação ao meio.
Referência:
JUNG, C.G. Natureza da psique. 8.ed. Vozes: Petrópolis, 2011.
BRUCATO, Satyros Phil; CAMPBELL, Brian; SNEAD, John, and UDELL, Rachelle
Sabrina. Mage: the Ascension.