Publicado pela primeira vez no site do IJEP no dia 06/08/2021
É sabido que o lúdico permeia a psicoterapia. Usamos a expressão artística e até jogos e brincadeiras propriamente ditos para possibilitar a manifestação do inconsciente. Porém, se compreendermos o conceito de jogo de forma mais ampla, podemos pensar que a própria psicoterapia possui estrutura semelhante a um jogo. Esta perspectiva pode ser entendida a partir do conceito de jogo desenvolvido por Johan Huizinga. Assim, este artigo tem como objetivo verificar se este conceito se aplica à psicoterapia junguiana.
Na concepção do autor, o jogo é uma função vital para a alma humana. Ainda que não se trate de uma necessidade física, orgânica, o jogo, assim como o lúdico no geral, é o que adorna e anima a vida, o que lhe dá significado. Desta forma, segundo o autor, o elemento lúdico está presente em vários lugares: nas artes; nos julgamentos da corte, como herdeiros dos jogos de retórica ou de insultos; na guerra organizada medieval, que funcionava como uma grande partida de xadrez; e nos esportes competitivos que, apesar de terem perdido parte de sua essência na busca incessante pela vitória, ainda guardam algum grau de ludicidade. Logo, podemos pensar no jogo como uma expressão da própria vida pulsante, que nem sempre se organiza a partir da racionalidade da consciência, pois muitas vezes retrata as verdades mais profundas da alma. Esta função é análoga à expressão artística na terapia, já que ela é também lúdica.
Nesta concepção, o jogo é desinteressado, não atende a nenhuma necessidade física ou instintiva e nem é entendido como um dever. Desta forma, pode ser facilmente adiado ou suspenso, o que o torna uma atividade voluntária e livre. Participam do jogo aqueles que realmente o querem e, caso haja algo que interfira nessa liberdade, perde-se o elemento lúdico. Por este mesmo motivo, não faz parte da vida comum, sendo uma esfera própria, uma pequena realidade com limites de tempo e espaço, na qual o espaço pode ser marcado por elementos concretos, como a corte ou o campo de futebol, ou por elementos virtuais, de forma que os limites não constituem um lugar físico, mas um espaço próprio e imaginário. Esta condição se torna evidente em muitos jogos e brincadeiras cujo foco é a imitação ou representação de outra coisa: a criança que crê ser um animal ou até a representação de alguma divindade através do uso de máscaras.
Além disso, todo jogo possui regras próprias, um conjunto de acordos entre todos os participantes, que podem incluir as regras definidas de um jogo de tabuleiro, como também códigos de conduta ou procedimentos de etiqueta. Estas regras dão ao universo particular do jogo uma ordem determinada, mesmo que temporária e frágil, na medida em que qualquer quebra ou suspensão destas regras significa o rompimento desta pequena realidade. Esta ordem não pode ser encontrada na vida comum: enquanto o jogo possui regras claras cuja quebra significa o rompimento do jogo, a vida não possui regras claras e, mesmo que elas sejam quebradas, não resulta necessariamente no seu rompimento, o que nos leva a pensar que o jogo é sempre justo, ao contrário da vida.
Apesar de o jogo ser limitado, sua experiência não é, trata-se de uma criação do espírito que pode ser transmitida ao próximo e transformada em tradição. Logo, uma das principais características do jogo é sua capacidade de repetição e transmissão. Além disso, todo jogo possui algum objetivo: busca-se a vitória por meio da demonstração de alguma habilidade ou característica, ou seja, é sempre uma competição. Por este motivo, além da diversão, todo jogo é acompanhado de tensão, pois não é possível ter certeza se o jogador irá alcançar ou não o objetivo. Porém, sendo uma prova de alguma habilidade ou apenas sorte, o jogo é sempre um espetáculo que leva tanto os jogadores quanto quem o assiste ao êxtase, tornando-se assim estético.
Já a psicoterapia junguiana tem como objetivo conscientizar o analisando de seus próprios conteúdos inconscientes, possibilitando assim um encontro consigo mesmo, aproximando-se de sua real personalidade e, a partir desta aproximação, reconhecer algum problema no seu desenvolvimento psíquico que pode ser a origem dos sintomas apresentados. Como parte de seu método, a psicoterapia possui um setting próprio, mais conhecido como setting terapêutico, que constitui nos arranjos práticos para a realização do processo, definindo o tempo e espaço, as regras que o regem bem como a relação entre analista e analisando.
Quando tratamos do espaço na psicoterapia não estamos falando desse conceito de forma concreta, mesmo que muitas vezes o pareça. Esta concepção fica mais clara em tempos de pandemia, quando realizamos atendimentos on-line. Assim, o “espaço” deixa de ser físico, tomando proporções quase que puramente virtuais. Logo, podemos afirmar que a psicoterapia por si ocorre em um espaço virtual próprio, uma delimitação que, apesar de não ser concreta, é clara para os envolvidos, fora da vida cotidiana. Outro aspecto que reforça esta ideia é o sigilo, pois o que é abordado no setting ali permanece.
Quanto às regras, podemos citar o contrato terapêutico, que é um acordo entre analista e analisando, que define os aspectos técnicos da relação comercial – os valores –, além da conduta esperada tanto do analisando quanto do analista. Para o bom funcionamento do processo, essas regras precisam ser obedecidas e, quando necessário, revistas.
Sobre a relação terapêutica, Jung (2011) diz que todo processo da psicoterapia é um encontro entre dois sistemas psíquicos que, como tal, leva à modificação de ambos. É como na reação entre dois elementos químicos: nenhum dos elementos sairá da reação da mesma forma que entrou. Isto também nos leva a pensar que este encontro pode ser entendido como um confronto, um encontro face-a-face entre o analisando e o analista assim como o analisando consigo mesmo. É uma prova de habilidade, na qual as virtudes e os vícios do analisando são testados durante o aprofundamento do contato com o analista e com sua própria alma. O resultado desse confronto é uma criação do espírito, que pode surgir como uma epifania, insight ou tomada de consciência gradual que leva a uma mudança de atitude.
O objetivo da psicoterapia de possibilitar o encontro consigo mesmo e, assim, reconhecer e compreender nossa natureza, com seus aspectos conscientes e inconscientes, permitindo-nos identificar a motivação para determinados comportamentos é análogo a ter conhecimento das regras de um jogo. Enquanto não conhecemos essas regras, podemos nos identificar com os aspectos inconscientes e, assim, perdemos nossa liberdade de escolha.
Podemos estabelecer vários paralelos entre o jogo e a psicoterapia junguiana: ambos permitem a experiência de liberdade; possuem uma ordem própria e determinada, mesmo que temporária e frágil; ocorrem em um espaço próprio; levam a criação do espírito; são confrontos, nos quais habilidades são testadas. A principal diferença que encontramos entre jogo e a psicoterapia junguiana é quanto a sua finalidade: no jogo buscamos apenas o jogar, enquanto a psicoterapia busca a ampliação de consciência. Mesmo que o jogo possa causar esta ampliação, é apenas uma possibilidade e não seu foco. Outro resultado dessa diferença está na criação do espírito, pois o que é criado na psicoterapia é intransferível, enquanto no jogo é coletivo, podendo se transformar em traço cultural.
A partir dos paralelos apresentados, podemos dizer que a psicoterapia junguiana e o jogo, como conceituado por Huizinga, possuem estruturas semelhantes, mas claramente não a mesma. Apesar disso, a semelhança é tal que podemos dizer que o elemento lúdico está sempre presente na psicoterapia junguiana, mesmo que secundário, e que o jogo pode ser profundamente terapêutico, ainda que não possua este objetivo, pois permite ao jogador conhecer aspectos de si mesmo, tais como suas habilidades.
Referências
HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.
JUNG, C.G. A prática da psicoterapia. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.