Publicado pela primeira vez no site do IJEP no dia 12/03/2020
Este artigo é o primeiro de uma sequência de discussões sobre elementos diferentes do anime (animação japonesa) “Serial Experiments Lain”. Este anime foi escolhido para análise primeiramente para estudar o conceito que ele traz de wired que, aparentemente, é o que chamamos de internet. Porém, dentro do anime, possui uma escala muito maior do que a internet tem no mundo real, invadindo o campo de muitos reinos místicos. Contudo, ao assisti-lo repetidas vezes, realizando anotações minuciosas, foi possível perceber que não é este o único tópico de interesse que esse anime traz. Outros são: a ideia de deus e a questão referente ao que é a realidade, principalmente no contraste entre concretude e virtualidade. Assim, neste primeiro artigo o objetivo é apresentar o anime como um todo, a base técnica e teórica para realizar uma análise psicológica da obra de um ponto de vista junguiano. Por fim, uma visão geral que este anime traz sobre a reedição de conceitos clássicos, na visão moderna da tecnologia, tendo como foco a computação. A série de artigos pretende detalhar toda a extensão do anime, inclusive seu final. O segundo artigo será sobre o virtual e concreto em relação ao inconsciente e consciente, o terceiro sobre o que o anime apresenta como wired, associando ao conceito de inconsciente coletivo, e o último sobre o deus da wired e suas relações com o que Carl Gustav Jung denomina Self e ego inflado.
O anime contém 13 episódios de aproximadamente meia hora. Criado em 1998, o roteiro inicial foi escrito por Yasuyuki Ueda, produzido por ele em parceria com Yutaka Maseba, e dirigido por Ryuutarou Nakamura e Shigeru Ueda. O anime não tem uma história exatamente linear: entre as cenas que contam a história em si há muitas outras cujos diferentes narradores, muitos deles personagens da história principal, discursam sobre as mais variadas ideias que de alguma forma se conectam com a história principal. Muitas das informações apresentadas nessa série de artigos serão desses discursos e não exatamente da história principal.
A história se inicia com uma garota narrando sobre como ela não se sente adequada “aqui” e que, se continuar neste lugar, não poderá se conectar a todos. Logo após isto, ela pula de um prédio. Na cena seguinte, a personagem principal, chamada Lain, está em sua sala de aula, quando muitas garotas parecem apreensivas e então se revela que a garota que se suicidou era desta mesma escola e que estava enviando mensagens de celular para todas as meninas com as quais teve algum contato, inclusive Lain, que foi a única que realmente respondeu. Foi assim que começaram conversar sobre muitas coisas: onde aquela garota estava? Por que ela fez isso? Como é morrer? A garota responde dizendo que estava na wired, que ela foi chamada para lá, de onde ela poderia se conectar com os outros; que morrer foi uma experiência muito dolorosa e, por fim, diz que Deus está com ela na wired.
Apresentada com essas informações confusas, a protagonista começa a se interessar pelo que está acontecendo, como também quanto ao mundo geral que a cerca, pois até então fora uma pessoa muito apática. O nome do anime é explicado por sua atitude em relação a essas vivências: ela começa a experimentar, tanto no sentido de lidar com coisas novas – sair mais com amigas, se interessar mais pelos outros e afins –, como no sentido de experimento científico, como no exemplo das conversas que ela estabelece com a amiga morta, em que constantemente assume uma postura de tentar investigar o que está acontecendo e obter o máximo de informações possível.
Uma das linhas principais do anime se refere a quem e o que ela realmente é. Esta pesquisa começa quando, ao interagir mais com pessoas diferentes, descobre que ela não é a única “Lain”, pois ouve relatos de outras garotas que tem o mesmo nome, aparência e voz que ela, mas com comportamentos totalmente diferentes. Porém, nesta descoberta, ela esbarra em mistérios muito maiores que abrangem a cosmologia do mundo que habita, a noção de realidade em si, principalmente na relação entre o mundo terreno e a wired, sobre como os humanos se conectam, sobre os efeitos das ondas produzidas pelos humano no mundo e, inclusive, sobre a própria natureza do que é o ser humano.
Para um telespectador versado em filosofia e mitologia, os conceitos que o anime traz não são inovadores, mas eles se tornam muito mais interessantes ao se perceber a relação deles com conceitos mais clássicos, ao mesmo tempo que trazem um ar moderno e científico, como se observa, no nono episódio, a citação de uma série de pesquisadores que abordam temas pouco ortodoxos, ou de forma não ortodoxas, que ou seguem a vertente da tecnologia da informação, ou sobre comunicação inconsciente. Um exemplo é quando um personagem diz que a wired seria um mundo de ideias perfeitas, uma camada superior ao do mundo concreto, portanto tudo o que é concreto é uma cópia física das ideias contidas nesse mundo, conceito muito próximo ao “mito da caverna” de Platão, mesmo que sutilmente diferente.
Entre os conceitos apresentados, um que mais chama a atenção é o que denominam “inconsciente coletivo” que, mesmo sendo muito próximo ao conceito cunhado por Jung, no sentido de ser de alguma maneira a memória da humanidade como um todo, também é uma forma em que os humanos se ligam sem contato direto: como uma rede de informações que percorre a todos e que poderíamos nos ligar a ele para nos comunicar com os outros, bem como extrair informações dessa camada que está além do humano comum.
Além destes conceitos, a perspectiva junguiana pode nos ajudar a entender o próprio processo de criação artística, que ele separa em duas categorias: a obra de arte “verdadeira”, que é uma imagem oriunda do inconsciente coletivo, na qual o autor é “apenas” um visionário que conseguiria dar concretude para essa imagem, e a “psicológica”, que é planejada de forma racional por seu criador. Podemos pensar que este anime se encontra entre essas duas, com uma tendência maior à arte psicológica. Não podemos negar que ele é preenchido por grandes visões, inclusive a própria forma de tratar esses conceitos, tão caros à humanidade, com uma abordagem moderna. Mas é claro que a forma que essa discussão é feita possui muito da própria intencionalidade do autor. Isso se torna claro quando muitos dos conceitos são trazidos de forma direta, como por exemplo a própria palavra wired que, traduzindo, seria “com fio”, que é a forma inicial de como acessar a internet, principalmente na época em que o anime foi criado. Conceito que está entrelaçado com o que o anime chama de inconsciente coletivo, por este ser uma forma “sem fio” de se conectar às pessoas e, por fim, o conceito de evolução humana que é proposto por um personagem, que se baseia em se afastar do mundo concreto para alcançar uma realidade “superior” no virtual/espiritual.
Referências:
JUNG, C. G. Psicologia e poesia. In: ______ O espírito na arte e na ciência. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2011.