Cosplay é a abreviação de Costume play que podemos traduzir como brincar/jogar de se fantasiar. Embora mais popular no Japão, sua origem se deu nos Estados Unidos no final dos anos 1940 no primeiro evento de ficção científica chamado Worldcon, no qual Forrest J. Ackerman e Myrtle R. usaram uma “fantasia” baseada em um filme de ficção científica. Nas edições posteriores esta brincadeira já se tornava uma tradição, na qual muitos dela participavam. Só se tornou popular no Japão a partir dos anos 1980, quando Nobuyuki Takahash criou uma série de artigos sobre Cosplay nas revistas de ficção científica, incentivando a prática. No Brasil já existia uma tradição semelhante também, nos anos 1980, nos eventos focados na ficção científica e relacionados ao RPG, porém o uso da expressão só se inicia na década posterior, por influência japonesa devido aos animes que se tornavam popular na época. Trata-se de um costume onde os fãs de séries, jogos e todos os tipos de animação se vestem como seu personagem preferido nas convenções, normalmente acompanhado de atuação correspondente, tentando se aproximar o máximo possível do personagem. Além disso é comum os próprios Cosplayers, praticantes deste jogo, produzirem as próprias roupas e acessórios, que posteriormente pode se tornar fonte de renda para os veteranos, tanto pelos prêmios em dinheiro nos concursos realizados, como das empresas que os contratam para eventos comemorativos e até quando produzem roupas e acessórios para outras pessoas.

   Em 2015 uma reportagem foi publicada no site UOL que discutia como este jogo poderia ser danoso, já que muitos jovens se identificavam tanto com algum personagem que poderiam esquecer de si mesmos, vivendo apenas o personagem. Esta reportagem saiu do ar poucos dias depois, principalmente por várias vozes de protesto, tanto dos próprios cosplayers, como de vários especialistas de áreas como psicologia e psiquiatria, e também do público dos eventos relacionados, que não são adeptos desta prática. Porém, se lembrarmos que uma prática do homem primitivo era vestir-se com a pele do animal capturado para, assim, obter sua força, poderíamos pensar que esta prática de cosplay talvez produza efeitos positivos e não só danosos. Desta forma, este artigo tem como principal objetivo discutir alguns dos possíveis efeitos benéficos desta prática e, consequentemente, dirimir alguns dos preconceitos que foram criados sobre ela.

   Do ponto de vista psicológico, podemos aproximar o Cosplay do conceito de Persona, palavra para a máscara do autor grego, termo que foi empregado posteriormente por Carl Gustav Jung para descrever o fenômeno das “máscaras sociais” que usamos no dia a dia para adaptação no mundo externo. “Ela [persona] representa um compromisso entre indivíduo e sociedade, acerca daquilo que um alguém  parece ser: nome, título, ocupação isto e aquilo” (JUNG, 2011a, p. 47)  A pessoa pode se identificar com alguma destas máscaras, usando-a fora dos ambientes adequados, o que explicaria alguns praticantes que continuam no personagem mesmo fora das convenções. Porém, isto pode acontecer com qualquer máscara social, como o exemplo clássico do militar ou policial que nunca deixa de sê-lo, atuando na família como se fosse o general e seus familiares como seus subordinados. Desta forma, o Cosplay é tão perigoso quanto qualquer máscara, já que dentro do seu ambiente é adaptativo e é danoso em situações em que não se encaixa.

   Por outro lado, podemos supor que o Cosplay seja benéfico quando nos limites das convenções e festas temáticas. Se, como lembra Jung (2011b, p. 56), “poderíamos chamar o teatro, antiesteticamente, de instituição para o tratamento público de complexos”, então poder-se-ia considerar que todo tipo de arte pública, como as séries, jogos e animações, nas quais os Cosplayers se baseiam,   teriam o mesmo efeito.

   O tratamento público do complexo ocorreria por três vias principais: quando este complexo é retratado nos sentimos incluídos na categoria humana, o que nos livra da dor da solidão e de ser eternamente incompreendido; a resolução que o personagem encontra para seu problema pode dar pistas de como resolvermos os nossos; o conflito é projetado no personagem, o que nos permite dialogar com esta imagem diretamente, como um objeto externo, o que facilita o confronto. Considerando que nos complexos está represada uma quantidade de energia psíquica, o tratamento destes complexos pode tornar esta energia disponível para outros fins, o que poderá promover uma reorganização de conteúdo interno. É importante percebermos que apenas uma elaboração externa pode não ser o suficiente, muitas vezes é importante que o espectador consiga introjetar esta resolução, adquirindo consciência de como tal personagem o representa e como resolver este conflito.

   Além deste efeito, claramente o personagem que desejamos incorporar parece possuir características que diferem das nossas e, muitas vezes, esse desejo de o incorporar surge da vontade de ter estas características. Este fenômeno é muito mais comum em crianças, porém não podemos negar que ele exista também no adulto. Frases como “eu gostaria de ser tão forte como tal personagem” são exemplos deste traço e se vestir como tal personagem pode auxiliar a evocar esta característica. Este pensamento está na base de muitos rituais religiosos e eventos culturais, como ocorre em algumas culturas consideradas primitivas nas quais os caçadores vestiam peles de animais, que serviam tanto para adquirir as qualidades deste animal, como também para poder respeitá-lo, devido ao medo de ser atacado pelo espírito do animal. No pensamento mágico asteca, acreditava-se que ao escalpelar totalmente uma pessoa e vestir a sua pele, efetivamente se tornava esta pessoa. Todos os rituais relacionados a comer partes animais e até humanas com o intuito de absorver as qualidades dos mesmos podem ser incluídos nesta categoria. Um exemplo é a transubstanciação que ocorre na Eucaristia quando a hóstia se torna a carne e o vinho, o sangue de Cristo, e ao ingeri-los podemos adquirir suas qualidades.

   Além do próprio fenômeno da identificação, podemos ver no Cosplay um forte elemento lúdico, que é enfatizado pela expressão “play”. A partir da perspectiva de Huizinga (2019), podemos compreender que o lúdico é qualquer fenômeno consentido por todas as partes; que possui regras de comum acordo, mas que devem ser seguidas estritamente; que possui delimitação de tempo e espaço; que se move a partir de sentimentos de tensão e alegria; que possui um fim em si mesmo; e, principalmente, que ocupa um lugar especificamente destinado a ele, fora da vida cotidiana. A partir desta caracterização, e com a descrição do autor de que o lúdico é uma expressão vital da existência humana, podemos aproximar este conceito de lúdico ao de expressão simbólica de Jung. O símbolo é entendido como a linguagem do inconsciente; trata-se de um mistério que a consciência não consegue alcançar, já que a racionalidade e a dúvida pode banalizá-lo e tirar seu valor (JUNG, 2011, p. 291). Ao contrário do que é pensado em outras teorias, para Jung o símbolo não está escondido por trás de camadas defensivas, mas é uma linguagem diferente da consciente. O símbolo é vital pois é uma expressão da própria alma viva, através dele a relação entre consciência e inconsciente é estreitada, o que nos permite viver para além da banalidade do dia-a-dia.

   Neste sentido, podemos dizer que quando alguém se identifica com algum personagem é bem possível que este personagem seja uma expressão simbólica para sua própria necessidade inconsciente. Logo, vestir-se e atuar este personagem, isto é, incorporá-lo pode representar a concretização deste símbolo. Desta forma, a consciência poderá se expandir, sem que sua lógica banalize o sentido, já que se trata de um contato indireto. Para reforçar este ponto de vista, lembremos que Moreno (2014) denomina “fome por expressão” a necessidade de expressão do inconsciente, que é uma “fome por atos” mais do que uma “fome por palavras”, apontando que a ação é muito mais importante do que as palavras para esta expressão.

   É assim que podemos caracterizar o Cosplay como uma expressão artística genuína que, justamente por isso, passa pelo elemento lúdico, o que o torna uma forma possível para a expressão de conteúdos inconscientes. Quando a consciência tem contato com o conteúdo inconsciente, sem deixar que este seja banalizado, ela se expande e ganha mais ferramentas, o que pode auxiliar no enfrentamento do mundo, possibilitando uma melhor qualidade de vida e, logo, uma melhor saúde psíquica.  Contudo, quando a competição, que é um elemento constituinte do jogo, torna-se central, como podemos observar em vários concursos, nos quais muitas vezes têm prêmios em dinheiro, ou seja, quando o “ganhar” se torna mais importante do que o jogo em si, o elemento lúdico é perdido e, consequentemente, o simbólico.

Referências

HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.

JUNG, C.G.  A vida Simbólica. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. 

________ O eu e o inconsciente. 23. ed.. Petrópolis: Vozes, 2011a. 

_________Símbolos da transformação. 7. ed.. Petrópolis: Vozes, 2011b. 

MORENO, J.L.; MORENO, Z.T. Fundamentos do psicodrama. São Paulo: Summus, 2014.

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