Publicado pela primeira vez no site do IJEP no dia 16/06/2019

   Este artigo é inspirado, inicialmente, em meu trabalho de monografia que apresentou como objetivo compreender como a teoria da Psicologia Analítica pode ajudar a entender o fenômeno do extremismo e suas projeções. Originalmente, usei o extremismo islã e anti-islã como exemplo. Contudo, neste texto será discutido esta ocorrência per se, pois, penso, não há necessidade de tomar exemplos externos, já que se trata de um fenômeno que acontece na profundidade da alma humana, usando os acontecimentos externos apenas para tomar forma e poder se revelar no mundo concreto. Mas esta ocorrência é por si algo que existe a priori, um arqué-tipo em sua definição inicial, algo que vai além da vivência do dia a dia e marcado na alma humana a ferro, para nunca mais ser esquecida. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que mesmo tendo raízes tão profundas, e podendo ser chamado de uma reação “natural” em muitos casos, não pode ser considerado saudável, pois o extremismo é como um veneno que brota da própria alma do sujeito, mas que a contamina a ponto de borrar seus sentidos e este apenas conseguir direcionar seu ódio, sem mais conseguir contê-lo.

   Mas afinal, o que define esse fenômeno? Ferreira (2002, p. 309) apresenta o extremismo como: “doutrina ou corrente que preconiza soluções extremas para os problemas sociais”, uma definição que se vê como um tanto simples e até mesmo óbvia. Mas, ao pensarmos essa frase mais profundamente, surge a questão: afinal o que é algo extremo? A primeira resposta poderia ser, simplesmente, algo sem medida, algo que estaria além da capacidade e julgamento humanos; porém, outra resposta para isso seria agir de acordo com a extremidade em um conjunto de polos. Se entendermos, com Jung, que a personalidade é constituída de elementos polares, que ao mesmo tempo buscam algum tipo de união, o extremismo seria assumir que apenas um dos lados tem valor, sendo o outro apenas um transgressor sem valor, que deveria ser submetido às regras do correto. De certa forma, encontramos a noção de certo e errado nos forçando a conviver com o conflito dos opostos e enxergar que há luz na escuridão, e escuridão na luz, como parte da vida em sociedade.

   No entanto, a questão dos opostos que permeia a alma humana é muito mais profunda do que aparenta. Tomemos o seguinte exercício: a ação de matar um inocente em troca da salvação de um número maior de pessoas. Nesse caso, seria correto matar essa pessoa? Ou isso não passaria de fazer um mal em favor do bem? O julgamento humano é limitado e mesmo este exemplo mundano causa desconforto na maioria das pessoas. Se olharmos no fundo da alma podemos ver este tipo de conflito em coisas mais profundas e angustiantes: o que eu sou? O que eu quero? Eu tendo mais a este lado ou àquele outro? A questão dos opostos é em si uma questão existencial para todos nós, porque ela define o que somos individualmente e como um todo.

   Se espera que este conflito, vivido principalmente na faixa dos 40 anos, cause certo desconforto em quem o enfrenta, mas que seja possível de alguma forma achar esboços de uma resposta para tais perguntas, possibilitando equilibrar os opostos à sua maneira. Tornando possível encontrar quem ela realmente é em essência, contudo, essa meta acaba por ser inatingível, um eterno objetivo para nos entendermos com nós mesmos. Mas encarar a escuridão que existe em nossa alma, a verdadeira imagem do demônio que existe em nós, é tão aterrador que muitos preferem se prender a valores tão belos e corretos, como verdadeiros paladinos. Porém aí está a armadilha, ao desconsiderar a verdade dos outros, perdemos a medida do que é justo e matamos pelos nossos ideais, seja concretamente, ao matar uma pessoa que representa o pensamento contrário ao nosso, seja matar em nós e nos outros as outras possibilidades, criando artificialmente só uma possibilidade de caminho para todos. Em termos junguianos, o Ego, o que nos dá noção de nós mesmos, ao encarar a Sombra, existência do (que vemos como) mal em nós, se apavora e a rejeita com todas as suas forças, se apega ao que chamamos de Persona, a máscara que usamos para viver em sociedade, consequentemente nossos ideais do que vemos como certo e perfeito, o que nos leva viver uma existência pela metade.

   Entretanto, a sombra reclama seu espaço dentro de nossa alma e, como um diabrete, sussurra palavras de ódio em nossos ouvidos, algo como “está lá o mal verdadeiro, tudo o que você odeia em você mesmo (sem realmente saber) está representado naquela(s) pessoa(s)!” E, convencidos com essas palavras, atacamos o outro como aquilo que está mais profundamente reprimido em si mesmo. Geralmente, aquele influenciado por essa “voz” consegue seus próprios seguidores, acometidos do mesmo mal que o afeta, pois onde existe o desconforto em uma pessoa, tende a existir em várias outras, é preciso apenas alguém para falar a “voz” latente em diversas outras. Porém, o que se espera que as pessoas que foram atacadas façam? Em situações de perigo, o primeiro instinto de qualquer ser vivo é lutar ou fugir: lutar se relaciona ao ódio, fugir se relaciona ao medo. E, tomada pelo ódio e o medo a alma se corrompe e encontra a própria insegurança sobre a questão dos opostos em seu interior, escolhendo um lado oposto ao do atacante. Dessa forma, é acometido pelo mesmo mal que o atingiu, que se espalha como uma praga em todos que foram tomados pelo ódio, trazendo para o exterior o mesmo conflito de opostos que existe no interior de cada indivíduo.

   O que acomete a alma do extremista é o medo que ele tem de sua condição de humano, o pavor da existência sempre parcial, que busca uma completude eterna, uma busca na qual muitos se apavoram com o mal que existe dentro de si e acabam procurando o exorcizar, tornando o inimigo interno, externo, permitindo que ele seja combatido de forma mais fácil. Contudo, parece que no momento em que vier a compreensão de que o “inimigo” está em si mesmo – e no lugar de ser apenas enfrentado, deve ter suas qualidades reconhecidas, para que possa se buscar uma convivência lado a lado -, o extremismo se abrandará, abrindo um caminho para a busca de nossa verdadeira essência.

Referências:

FERREIRA, A.B.H. Mini Aurélio: O minidicionário da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

JUNG, C. G. O bem e o mal na psicologia analítica. In: _____. Civilização em transição. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

_____. A luta contra as sombras. In: _____. Aspectos do drama contemporâneo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.